SJ reclama protecção dos direitos de autor dos jornalistas

É ao jornalista que compete o controlo permanente do destino das suas criações, defendeu o presidente da direcção do Sindicato dos Jornalistas (SJ) no I Fórum dos Autores Portugueses. Alfredo Maia salientou a necessidade da Assembleia da República aprovar urgentemente a regulamentação dos direitos de autor dos jornalistas.

O presidente do SJ, interveio no painel “O direito de autor e as novas tecnologias”, no Fórum organizado pela Sociedade Portuguesa de Autores, a 19 de Maio, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Alfredo Maia lembrou que já passaram cinco anos desde que a Assembleia da República se comprometeu a regulamentar, num prazo de 120 dias, a protecção dos direitos de autor dos jornalistas, cuja consagração formal se encontra prevista na Lei n.º 1/99, de 13 de Janeiro.

Sublinhando que o Parlamento “não pode furtar-se por mais tempo” às suas responsabilidades nesta matéria, Alfredo Maia renovou o “compromisso ético que deriva do direito moral dos jornalistas sobre as suas criações” e apelou à “comunidade dos autores portugueses para que exprima a sua solidariedade para com estes profissionais, reclamando a urgente regulamentação dos seus direitos, já objecto de três projectos de lei mas nunca concretizada”.

É o seguinte o texto, na íntegra, da intervenção do presidente do SJ:

I FÓRUM DOS AUTORES PORTUGUESES

Lisboa – 19.MAIO.05

PAINEL “O DIREITO DE AUTOR E AS NOVAS TECNOLOGIAS”

INTERVENÇÃO DE ALFREDO MAIA (SINDICATO DOS JORNALISTAS)

Completaram-se no passado dia 13 cinco anos sobre o fim do prazo de 120 dias que a Assembleia da República impôs a si própria para regulamentar a protecção dos direitos de autor dos jornalistas, cuja consagração formal se encontra prevista na Lei n.º 1/99, de 13 de Janeiro, que aprovou o novo Estatuto do Jornalista.

Vários governos passaram desde então, mas os direitos de autor dos jornalistas continuam por regulamentar.

Ao saudar o 1.º Forum dos Autores Portugueses, no qual se congratula de participar, o Sindicato dos Jornalistas deseja sublinhar a importante actualidade dos temas propostos para os debates, em particular as questões suscitadas pela eclosão, desenvolvimento e vulgarização das novas tecnologias de comunicação.

Mas o SJ não pode deixar de recordar nem de vincar um conjunto de princípios e de valores que a nova paisagem mediática apenas tornou mais premente, em consequência do verdadeiro esbulho moral a que expôs de forma maciça as criações dos jornalistas, pois, na realidade, não colocou problemas completamente novos.

Desses princípios, destacam-se dois de enorme importância:

O de que o jornalista é um autor cujas criações devem estar protegidas pelo direito de autor tanto na dimensão moral como material;

E o de que os objectivos de liberdade de imprensa, de difusão e de informação não diminuem, antes valorizam, aquelas dimensões.

Os jornalistas reivindicam a sua condição de autores não apenas porque têm a convicção de que, na sua actividade, o manejo da língua, a manipulação das imagens ou a conjugação dos sons vai muito mais longe do que a mera utilização de técnicas e de instrumentos.

Fazem-no também porque – legitimados na tarefa de contribuir para a preservação da herança cultural dos povos e de, tal como os outros autores, contribuírem para o acesso do público à informação, ao conhecimento e à informação, através de obras científicas, documentais, artísticas e jornalísticas autênticas – consideram que o direito moral é uma condição necessária ao desenvolvimento de uma imprensa livre e de qualidade e a um exercício profissional independente e responsável.

E não falamos apenas da responsabilidade civil ou criminal, quando os escritos ou as imagens são passíveis de contender com os direitos das pessoas e entidades objecto do trabalho dos jornalistas, pois há manifestamente valores – de ética pessoal e de deontologia profissional – cuja importância e cujo alcance suplantam as meras normas jurídicas.

Entre tais valores, encontram-se, designadamente:

O da lealdade para com as pessoas objecto do nosso trabalho e para com as fontes de informação, tanto nos procedimentos de recolha de informação como na explicitação do fim a que esta se destina;

O da dignidade da pessoa humana, cujo respeito se impõe especialmente em relação aos mais frágeis;

E o da autenticidade dos factos e dos respectivos contextos, com implicações no tempo, no modo e no lugar em que são divulgados.

É assim, por exemplo, que um jornalista que obteve autorização dos pais de uma criança com SIDA para a fotografar no âmbito de um trabalho com preocupações jornalísticas de rigor, de objectividade e de respeito pelos seus direitos, não deverá deixar de opor-se a que a sua criação seja reutilizada num contexto diferente – seja de publicidade, seja noutro tipo de publicação.

Na realidade, se a reutilização da mesma fotografia como conteúdo de criações publicitárias à revelia de quem detém a tutela da criança, além de implicar o autor do trabalho na prática de um acto incompatível com a sua profissão, consubstancia uma manipulação do menor doente que o jornalista manifestamente não deseja, a sua republicação num órgão diferente (sensacionalista, por exemplo) representa uma traição à lealdade da anuência concedida pelos pais, pois esta ocorreu mediante o pressuposto de um destino concreto, com o qual estes concordaram.

Se a reutilização indevida de trabalhos de jornalistas em fins e publicações diferentes daquelas para as quais foram originalmente criadas não é novidade (são conhecidas cedências de fotos para campanhas publicitárias e replicações de textos e imagens noutras publicações), e se a integridade das criações nem sempre foi respeitada, nem por isso é menos verdade que as transformações operadas na duas últimas décadas vêm dar nova ênfase à importância dos princípios e valores de ética pessoal e de deontologia profissional.

Uma das transformações mais relevantes radica em alterações na propriedade dos meios de informação e na sua concentração com a formação de importantes grupos, praticamente todos com interesses económicos e estratégicos em sectores adjuvantes, especialmente em plataformas de difusão (distribuição de periódicos, telecomunicações e internet…).

A tendência para a exploração de sinergias de grupo, traduzida na republicação de trabalhos nos diferentes órgãos e da utilização multiplicada da mesma tarefa, colocando o mesmo enviado a determinado ponto a produzir em simultâneo para mais do que um órgão de informação, foi potenciada com os avanços tecnológicos e com a convergência que estes vieram a proporcionar.

É certo que tais avanços permitem uma difusão ilimitada – mesmo numa escala planetária – de informações e de conhecimento e até de debate de ideias, mas exprimem-se negativamente através:

Da verdadeira proletarização das criações jornalísticas, apropriadas pelas empresas e distribuídas de forma multiplicada, sem justa contrapartida para os seus autores e sem o seu consentimento prévio;

De alterações e ofensas à integridade das obras jornalísticas, através de sucessivas adaptações de dimensão e de estilo, de acordo com os vários suportes e espaços “disponíveis”;

Da mercantilização da informação, muitas vezes destinada a credibilizar plataformas de serviços e publicidade.

Quando, no final da década passada e ainda no início do presente decénio, muitas empresas precipitavam investimentos no presumível El Dorado da Nova Economia, o Sindicato dos Jornalistas teve ocasião de avisar que nenhuma Nova Economia seria justa se não respeitasse “velhos direitos” dos jornalistas e outros criadores.

Ciosas da sua propriedade e dos seus ganhos, empresas e organizações patronais, indiferentes à injustiça do esbulho em que se lançavam, vieram gritar Aqui d’El Rei que os jornalistas e o seu Sindicato querem deitar a perder os seus sacrossantos investimentos e castigar as empresas que apostam no progresso, e ainda hoje muitas pretendem fazer vencer a tese de que obra jornalística é matéria-prima de uso industrial e venda a granel como aprouver aos seus donos – as empresas, claro está.

No complexo processo para a regulamentação dos direitos de autor dos jornalistas, no qual o SJ desempenhou um papel determinante, nunca deixámos porém de vincar dois pontos absolutamente essenciais das nossas posições:

1.º – Gerando-se mais valias com as “novas oportunidades de negócio” com criações jornalísticas, é justo que os seus autores delas compartilhem, mas não é este o objectivo central da defesa dos direitos de autor;

2.º – Não se rejeitando o interesse, nomeadamente para o público, mas também para a valorização das empresas, da disponibilidade de informação proporcionada pelas novas tecnologias de comunicação, é indispensável preservar a soberania dos autores sobre as suas criações.

Mais do que a dimensão patrimonial, tal soberania implica pois as garantias de integridade das obras e de efectivo poder de decisão do autor sobre o seu destino inerente à dimensão moral do direito de autor, o que exige garantias concretas de:

Exclusão do princípio da cedência genérica dos direitos de autor, pelo que qualquer utilização só poderá ser feita mediante autorização caso a caso;

Direito de oposição a republicação de criações em órgãos de informação diferentes daqueles para os quais foram originalmente produzidas.

Longe de corresponder a um qualquer capricho, esta segunda garantia compagina-se com uma das garantias mais estruturantes da liberdade de informação do ordenamento jurídico português – a cláusula de consciência, consagrada no Estatuto do Jornalista.

De facto, seria muito estranho que um jornalista, que tem hoje – e bem! – o “poder” de resistir a instruções contrárias à sua consciência e a possibilidade de denunciar o seu contrato de trabalho devido a alterações na orientação editorial do seu órgão de informação, não pudesse opor-se à publicação de trabalhos seus em publicações de cuja orientação discorde, ou com um fim distinto daquele que motivou a sua criação, ou num contexto completamente diferente daquele em que ocorreu.

Jornalisticamente, uma criação (uma simples notícia ou uma completa reportagem; uma crónica singular ou uma entrevista de fundo) tem de facto uma génese, uma motivação, um momento concreto, um contexto, uma “razão de ser”, uma baliza ética e até um devir problemático, pelo que a sua utilização posterior só pode ser decidida pelo próprio autor, ao qual cabe avaliar as alterações entretanto verificadas e ponderar as implicações da sua republicação – para si próprio e para terceiros.

Entre os exemplos que costumamos enunciar estão os das fotografias produzidas para denunciar determinados fenómenos (racismo, exploração de trabalho escravo, etc.), dos textos que abordam didacticamente determinados problemas do quotidiano (poluição, por exemplo) ou das entrevistas.

Sem entraves claros à sua reutilização sem o consentimento dos respectivos autores, as mesmas fotografias, uma vez cedidas ou vendidas pelas empresas, poderão ser usurpadas com fins completamente antagónicos aos do seu objectivo inicial e acabar por exemplo a ilustrar artigos que pretendem demonstrar a pretensa inferioridade da raça visada; os textos didácticos elaborados na óptica do interesse do público poderão ser usados para credibilizar uma qualquer campanha de marketing e publicidade; e a entrevista acabará por estar tão desactualizada como aquela realizada para certa televisão que, reapresentada anos depois, mantinha a pessoa entrevistada a falar de uma relação íntima extinta havia muito tempo…

Tais exemplos mostram por que razão tanto temos insistido que é ao jornalista que cabe o controlo permanente e pessoal do destino das suas criações, um controlo que tem cabimento tanto no quadro de uma relação de trabalho como no de um contrato de prestação de serviços e que convoca o jornalista à estrita observância das regras deontológicas da sua profissão e ao confronto com a sua dimensão ética de cidadão.

Quando estão passados mais de cinco anos de incumprimento de uma obrigação à qual o Parlamento não pode furtar-se por mais tempo, desejamos renovar esse compromisso ético que deriva do direito moral dos jornalistas sobre as suas criações e apelar à comunidade dos autores portugueses para que exprima a sua solidariedade para com estes profissionais, reclamando a urgente regulamentação dos seus direitos, já objecto de três projectos de lei mas nunca concretizada.

Disse.

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