SJ propõe pacto para cobertura de julgamentos por pedofilia

Em documento de análise e reflexão sobre as questões que se colocam à cobertura dos julgamentos por pedofilia, a Direcção e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (SJ) propõem que a abertura das audiências a jornalistas seja avaliada caso a caso, desde que se assumam compromissos que garantam o acesso real à informação e o respeito pelos direitos das partes.

O documento lembra o contexto em que actualmente se processa a informação, reconhece o «papel decisivo que os média desempenharam na recuperação do assunto Casa Pia», e alerta para os novos problemas com que se defrontam jornalistas, magistrados, advogados e investigadores.

Considerando que um desses problemas é “o da transferência do teatro processual penal” e tendo em conta as proporções que pode atingir a exposição de alguns dos processos por pedofilia, o SJ concluiu que, para o “rigor de um bom serviço aos cidadãos”, são “maiores os riscos da opacidade incompleta do que da transparência contratualizada”. Assim, propõe um pacto, sob a égide da Alta Autoridade para a Comunicação Social e com o assentimento dos juízes e das partes, estabelecendo a forma como se processará a cobertura dos referidos julgamentos.

Esse pacto deverá vincular os jornalistas, através do Conselho Deontológico, e as empresas de comunicação social, através dos respectivos directores.

É o seguinte o texto, na íntegra, do documento do SJ:

O SJ e os julgamentos por pedofilia

1. O Sindicato dos Jornalistas tem acompanhado com atenção – e nalguns momentos com preocupação – a forma como os média têm tratado o chamado “Processo Casa Pia”, assim como tem observado o envolvimento directo e indirecto dos vários operadores e protagonistas do “circo mediático” montado à sua volta.

2. O Sindicato reconhece que nem sempre o comportamento de jornalistas pode ser considerado irrepreensível, mas, sem pretender desculpabilizar atitudes e procedimentos susceptíveis de reparo, lembra que tal comportamento deve ser analisado num contexto muito mais vasto e complexo.

3. Tal contexto define-se essencialmente pela acelerada interacção de três fenómenos:

a) As condições de produção dos média, impostas pela desenfreada luta pelas audiências e pela degradação de direitos e garantias dos jornalistas;

b) O aumento da expectativa na resposta dos média às perplexidades que atravessam a opinião pública, sobretudo em face da percepção de alguma falência das instâncias que têm por função resolver os problemas que estão na sua origem;

c) A intensificação do debate sobre os problemas, os limites, os papéis e as regras dos operadores judiciários, assim como sobre o poder em geral e a própria Democracia e mesmo o receio da emergência de uma nova ordem de poder.

4. Não restando hoje dúvidas acerca do papel decisivo que os média desempenharam na recuperação do assunto Casa Pia, sepultado durante décadas numa vala comum de silêncios, cumplicidades e prescrições, também se reconhece que a opinião pública ainda não sente garantias de que o dossiê foi efectivamente devolvido à esfera onde deveria ter sido sanado em tempo útil o sofrimento e os danos das vítimas e devidamente punidos os culpados, restabelecendo-se a confiança na Justiça.

5. Jornalistas, magistrados, advogados e investigadores estão hoje confrontados com problemas novos e evidenciam uma grande incapacidade para responder a tempo às expectativas que neles deposita a sociedade, sem ofender as regras dos respectivos múnus, numa altura em que as noções de tempo sofrem mutações aceleradas.

6. Um desses problemas é o da transferência do teatro processual penal, forçada pela apetência dos média mas de algum modo consentida por protagonistas do processo, deslocando para o ambiente mediático o que talvez devesse permanecer ainda no limbo que transitoriamente deveria proteger o processo.

7. A aproximação do julgamento de um processo extraordinariamente mediatizado em que está deduzida acusação por crimes de abuso sexual de menores até 16 anos coloca na ordem do dia o problema (novo) do interesse dos órgãos de informação em cobrirem as respectivas audiências, sobre o qual o SJ considera dever pronunciar-se em tese geral, exprimindo o resultado de reflexões que julga pertinentes mas não atinentes a nenhum caso em particular.

8. Dispondo a lei processual penal que as audiências de julgamento por crimes de abuso sexual de menores até 16 anos são, por regra, excluídas de publicidade, não é de estranhar que os juizes titulares de processos desta natureza as mantenham afastadas dos olhos e dos ouvidos da opinião pública e, por consequência, da comunicação social.

9. Porém, a exposição de alguns processos concretos pode atingir tais proporções que nem o cenário mais optimista resiste à inevitabilidade de um grave risco de instrumentalização dos jornalistas e de deformação do seu trabalho, pelo enviezamento resultante da origem não revelável das suas informações sobre as audiências, às quais só poderiam aceder por interposta pessoa.

10. Pode haver casos em que, pelas proporções da exposição que atingem os processos, já não é possível deixar de optar entre alguns riscos da abertura das audiências a jornalistas e danos bem maiores que podem resultar do artificial prolongamento de um biombo de garantias processuais cujo cumprimento hoje verdadeiramente ninguém pode assegurar.

11. Sendo, para o rigor de um bom serviço aos cidadãos, maiores os riscos da opacidade incompleta do que da transparência contratualizada, o Sindicato dos Jornalistas considera que, da ponderação dos riscos e dos interesses em causa, deve ser avaliada caso a caso a abertura das audiências a jornalistas, desde que sejam assumidos compromissos que garantam, a um tempo, o acesso real à informação, a realização do julgamento em condições de serenidade e o respeito pelos direitos das partes, designadamente o da presunção da inocência e o da preservação da identidade das vítimas menores.

12. O SJ considera que tais compromissos devem ser formalmente estabelecidos, sob a égide da Alta Autoridade para a Comunicação Social e recolhendo o assentimento dos juizes e das partes, através de um pacto que vincule não apenas os jornalistas, através do Conselho Deontológico, mas sobretudo as empresas de comunicação social, através dos respectivos directores. O Sindicato está disponível para dar o seu contributo na elaboração do referido pacto.

13. Na eventual dificuldade dos tribunais em assegurarem fisicamente a presença de todos os interessados, o Sindicato defende que o acesso dos jornalistas (no número que os juizes determinarem, conforme as condições) poderá ser garantido através do sistema de “pool”, designada por e de entre os órgãos de informação (representados pelos respectivos directores), cabendo a estes determinar as regras do seu funcionamento e as formas de transmissão dos elementos recolhidos, podendo o seu trabalho ser complementado por um porta-voz qualificado do Tribunal, através de “brieffings” regulares com todos os jornalistas interessados, destinados a esclarecimentos técnico-jurídicos.

14. Sem embargo da disponibilidade para ceder as suas instalações para a reunião de constituição da “pool”, por razões de mera logística, e para prestar ajuda técnica na elaboração das regras da “pool”, o Sindicato não terá outra intervenção directa que não seja a relacionada com as suas funções, designadamente a de contribuir para que não sejam violados direitos e deveres dos jornalistas e para que sejam observadas as regras do Código Deontológico.

Lisboa, 3 de Outubro de 2003

A Direcção e o Conselho Deontológico

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