Segredo profissional em foco no colóquio “Os Média e a Justiça”

O sigilo profissional dos jornalistas e a interacção entre profissionais do jornalismo e da Justiça dominaram o primeiro painel do colóquio “Os Média e a Justiça”, que decorreu a 30 de Novembro, na Gulbenkian, no qual a maioria dos participantes defenderam a criação de gabinetes de Imprensa nos tribunais.

Oscar Mascarenhas, do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, abriu este painel com uma intervenção de enquadramento, onde defendeu que os jornalistas devem preservar a confidencialidade das fontes em qualquer circunstância.

O jornalista criticou duas decisões do Tribunal da Relação de Lisboa, que contrariaram esse direito. “Foram duas decisões que em muito pouco se distinguem da tortura. Assemelham-se à tortura porque partem de um pressuposto ideológico da deificação da verdade como um valor que se sobrepõe a tudo e tudo pode atropelar. Parecem-se com a tortura porque colocam o destinatário-vítima num drama entre a honra de cumprir o prometido e a obediência a padrões de conduta heterodeterminados.” Ora, defendeu Oscar Mascarenhas, a sociedade democrática entende que a obtenção da verdade requer um processo onde outros valores sejam respeitados. E o valor da consciência e da honra do cidadão é tão respeitável como o desejo colectivo de obter a verdade.”

“A luta por uma sociedade fundada na ética, na razão e no direito” é, para Eduardo Dâmaso, o ponto onde “a estrada nos junta, jornalistas e magistrados”. Para o subdirector do “Público”, é “indispensável superar o velho paradigma das relações entre comunicação social e justiça” através de um “back to the basics”: o reconhecimento de que o jornalismo e a justiça são “instrumentos essenciais do único poder que têm os que não têm poder: a defesa da lei e uma aplicação da justiça que não olhe a condições sócio-económicas nem a estatutos preferenciais determinados por uma qualquer imunidade ou capacidade de influência”. Para o jornalista, o desconhecimento múto entre o campo da justiça e o campo dos média tem de ser ultrapassado, “sob pena de um grave dano democrático”.

Reflectindo sobre o estado do jornalismo, Eduardo Dâmaso criticou o que definiu como “jornalismo de transcrição”. Um jornalismo “é dominado por uma relação mais íntima com os poderes do que com a opinião pública. Não tem autonomia crítica, atitudes distanciadas e está mais no quarto do poder do que na farda de quarto poder.

A credibilização do jornalismo passa também por um regresso a valores básicos: “O desafio que hoje se coloca a qualquer tentativa de fazer um jornalismo sério está na necessidade de procurar o padrão da sua própria independência, longe daquilo que são os interesses dos poderes formais e fácticos da nossa sociedade”.

O advogado Francisco Teixeira da Mota reflectiu sobre o posicionamento do advogado face à comunicação social. “O dever deontológico do advogado não lhe permite pronunciar-se sobre questões pendentes ou a instaurar”, disse. Teixeira da Mota abordou, em seguida, exemplos de situações onde a prática do advogado é diferente, nomeadamente no modelo anglo-saxónico, onde as regras são diferentes das seguidas na Europa continental “e os advogados organizam a cobertura mediática de julgamentos” em que estão envolvidos.

“Há questões que justificam a intervenção do advogado e justificam que a comunicação social queira dar notícia”, nomeadamente as relativas a algumas disfunções do sistema judiciário. “O segredo de Justiça tem permitido que muitos casos desapareçam. É um exemplo de uma situação em que se justifica que a comunicação social investigue”, prosseguiu. Como respostas para o relacionamento entre os média e a justiça, Teixeira da Mota apontou os gabinetes de Imprensa nos tribunais e desenvolvimento da formação dos jornalistas nesta área.

A juíza Fátima Mata Mouros defendeu que a questão do levantamento do sigilo profissional do jornalista deve obedecer “ao primado do Direito”, que está “na base de todo o sistema democrático”. A magistrada considera que não é inconstitucional a aplicação aos jornalistas do regime de levantamento do segredo profissional imposto por lei.

“Uma prova em tribunal tem que permitir o contraditório e o juízo sobre a razão de ciência do testemunho. Não basta afirmar uma verdade num julgamento. Ela tem de ser demonstrada”, disse. Para a magistrada, “será incumbência de cada jornalista preservar o seu direito ao sigilo profissional, tendo presente que a informação obtida por fonte que não quer ser identificada nunca poderá estabelecer a verdade em tribunal”.

A magistrada criticou as abordagens superficiais das questões jurídicas pelos média. Mas deixou uma interrogação: “Quando suspeitas que alcançam a importância noticiosa não chegam à barra dos tribunais, por não serem vertidas em acusação, ninguém se atreve, porém, a colocar a questão essencial: quem controla o poder de abstenção de dedução em Portugal? Será acidental o facto de os casos judiciais que maior polémica suscitaram na opinião pública consubstanciarem todos eles abstenção de dedução de acusação pelo Ministério Público?”. Fátima Mata Mouros defendeu, neste contexto, que a redução legislativa do segredo de justiça deveria começar pelos “processos arquivados que nunca chegaram à fase de julgamento”.

O procurador-geral adjunto Artur Costa traçou um quadro histórico das relações entre os média e a justiça, que considerou ter evoluído de “uma fase eufórica de encantamento” até uma “imagem de descalabro”. Para o magistrado, “a comunicação social foi um dos principais veículos de divulgação da «crise da Justiça»”. O julgamento do Padre Frederico, na Madeira, é um símbolo da fase eufórica e o julgamento do caso Moderna um exemplo da fase “pós-eufórica”. Esse percurso, onde o aparecimento da televisão privada e a concorrência entre estações televisivas foi decisivo, caracterizou-se, segundo Artur Costa, por “uma assimilação do campo da Justiça pela lógica dos média” ou, por outras palavras, “uma invasão dos tribunais pelos média”. A fase da euforia foi também a de uma abertura por parte dos tribunais, à qual sucedeu um retraimento e uma desconfiança, resultantes da “instrumentalização com objectivos alheios quer à informação, quer à justiça.”

Artur Costa defendeu a necessidade de uma aproximação entre os dois campos, que passa tanto pelo conhecimento, por parte dos jornalistas, das regras de funcionamento da Justiça, como pela modernização dos próprios tribunais e considerou que essa aproximação pode passar pela criação de gabinetes de Imprensa nos tribunais.

António Marçal, do Sindicato dos Funcionários Judiciais, procurou desenhar o papel do oficial de Justiça dentro da orgânica dos tribunais, sublinhando o modo, nem sempre fácil, como intervém na relação com entidades exteriores, nomeadamente os jornalistas. “Que respostas dar a perguntas tão simples como : Está marcado o julgamento? A que horas é? Os arguidos estão notificados? Fulano A é testemunha?”, disse. “São questões, tão simples como estas, que não têm tido uma resposta uniforme. As atitudes perante os vários públicos e os vários actores não têm uma resposta única, variando inclusive dentro de um mesmo Tribunal. É que, para além do entendimento de um magistrado diferir do outro, o próprio magistrado estabelece regras diferentes consoante o nível de interesse mediático do caso em concreto. Perante isto, o funcionário é, muitas vezes colocado perante a situação de não saber o que dizer”, prosseguiu.

Para António Marçal, “é necessário redefinir a organização dos Tribunais e as leis de processo, adaptando-as á sociedade actual”, agilizando e descodificando linguagens e comportamentos. “É tempo de dizer que o império da Lei não pode continuar a matar o principio fundamental da Justiça”, concluiu.

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