Queixas a propósito da reportagem “Transtejo a meio gás” (RTP)

Conselho Deontológico

Queixa nº 4/Q/2021

O Conselho Deontológico recebeu duas queixas de duas espetadoras da RTP, uma no passado dia 25 de outubro e outra a 3 de novembro, a propósito da reportagem “Transtejo a meio gás”, transmitida no programa ‘Sexta às 9’, da RTP, no dia 22 de outubro de 2021, e assinada pelos jornalistas Luis Vigário e Sandra Felgueiras.

A reportagem é sobre as greves e supressões de carreiras na Transtejo, e as suas causas, sublinhando que, ao contrário do que a empresa divulga, os problemas no serviço prestado não se devem apenas à falta de pessoal, mas decorrem sobretudo de “falhas graves na operacionalidade dos navios”. Relaciona ainda estas falhas com a contratação do atual diretor de manutenção da Transtejo.

  1. A primeira queixa chegou ao CD a 25 de outubro. Nela, a autora alega que os jornalistas “não relataram os factos com rigor e exatidão”, “não ouviram as partes com interesses atendíveis no caso”, manifestaram “falta de honestidade na investigação” pois “não informaram de forma clara e objetiva”. Aponta ainda o que classifica como “sensacionalismo e insinuações sem provas”.
  2. A segunda queixa sobre esta reportagem, recebida pelo CD a 28 de outubro e transformada em queixa formal no dia 3 de novembro, replica um email enviado à então coordenadora do programa ‘Sexta às 9’, a jornalista Sandra Felgueiras.

Nesta informação, escreve a queixosa que a reportagem sobre os problemas da Transtejo “parece escolhida como um contexto para denegrir a imagem profissional” do diretor de manutenção da empresa, Miguel Navalhas, “com a exibição da sua fotografia na plataforma Linkedin, mas distorcendo a informação que lá está sobre o seu percurso profissional”. Sublinha que este responsável esteve ”26 anos na Divisão de Manutenção no Arsenal do Alfeite e não 26 anos como Radiotécnico em navios da Marinha Mercante”, como referido na reportagem.

 

Teor das queixas:

Para além dos elementos já expostos é o seguinte o teor das duas queixas recebidas pelo Conselho Deontológico:

  1. Maria do Carmo Santos alega que os jornalistas “não relataram os factos com rigor e exatidão”, exemplificando: “Na reportagem é referido o nome e apresentada a página do Linkedin com a fotografia do atual Diretor de Manutenção da Transtejo”, mas “apenas referiram que tinha o Curso de Radiotecnia, sem menção aos 26 anos em que serviu no Arsenal do Alfeite, como responsável de Manutenção dos navios da Marinha de Guerra Portuguesa, cargo determinante para as funções atuais”.
  2. A queixosa refere igualmente que, na reportagem, com base numa fonte não identificada, “é lançada a suspeita de que o atual Diretor não é Engenheiro” pois a peça indica que “o seu nome não consta da Ordem dos Engenheiros”.
  3. Ainda sobre esta matéria, a reclamante acrescenta: “A Escola Superior Náutica Infante D. Henrique forma Oficiais Pilotos da Marinha Mercante, Engenheiros de Máquinas Marítimas e Engenheiros Eletrotécnicos Marítimos (ex-Curso Superior de Radiotecnia) há 97 anos! Não é obrigatória a inscrição na ordem dos Engenheiros para exercer funções relacionadas”.
  4. Alega também que “o(s) jornalista(s) não comprovaram os factos e não ouviram as partes com interesses atendíveis no caso”, insistindo que “não foi contactado nem foi ouvido o atual Diretor de Manutenção, principal visado na reportagem”, e diz que “a reportagem revela que houve falta de honestidade na investigação e que o(s) jornalista(s) não informaram de forma clara e objetiva”.

 

Procedimentos:

No seguimento destas queixas, o CD contactou os visados, que inicialmente alegaram não ter tido acesso às queixas, motivo pelo qual o CD, na tentativa de conseguir esclarecer a questão, disponibilizou as reclamações apresentadas.

  1. Após a receção das queixas, o CD informou os jornalistas em causa e solicitou mais informação. As perguntas foram:
    1. Além da consulta da página de LinkedIn do atual diretor de manutenção da Transtejo, e uma vez que uma fonte não identificada ouvida na reportagem coloca em causa, nas afirmações que faz, a idoneidade e capacidade profissional daquele responsável, gostaríamos de saber se tentaram ouvir o visado.
    2. Que outras démarches fizeram para aferir na totalidade qual a formação e a experiência profissional do técnico em causa.
    3. Percebemos pela reportagem que questionaram a empresa, mas não se percebe se foi pedida informação (e se esta foi facultada) sobre a formação e experiência do atual diretor de manutenção.
  2. Numa primeira resposta ao CD, os jornalistas alegam que não podem responder por não terem tido acesso às queixas recebidas, ao que o CD respondeu facultando o acesso a toda a informação. No entanto, admitem tratar-se “das mesmas queixas já recebidas na RTP”, informando que “o assunto foi abordado diretamente com os queixosos, que se mostraram esclarecidos”, e que o caso ficou encerrado.
  3. Para além disso, os autores da reportagem começaram por consideram que, no seu entendimento, esta “não é a sede própria para a análise das duas queixas”, alegando que o CD é um órgão que integra a orgânica do Sindicato dos Jornalistas e que os jornalistas em causa não são sindicalizados.
  4. Após insistência do Conselho Deontológico os autores da reportagem acabaram por responder que realizaram “todas as diligências tendo em vista o apuramento do necessário contraditório”, que a reportagem “foi realizada no mais estrito cumprimento das regras deontológicas e em rigor” [sic] e que “o seu interesse público é inegável”.
  5. Lembram que “a peça revelou que as constantes greves na Transtejo, que afetam milhares de pessoas, não se devem apenas a uma falta de recursos humanos, como o conselho de administração da Transtejo procurava fazer crer, mas também a uma sistemática falta de barcos – demonstrada com informação documental recolhida pelo Sexta às 9 e nunca desmentida pelo CA da Transtejo”.
  6. Sobre a necessidade de ouvir o diretor de manutenção na peça que a RTP transmitiu, escrevem: “A peça revelou que a falta de barcos se deve às falhas na manutenção que se acentuaram desde a nomeação do novo diretor de manutenção. Essas falhas deveriam ser comentadas pela administração e não pelo próprio, uma vez que a referida nomeação compete ao CA da Transtejo e não ao próprio”.
  7. Consideram ainda que, tendo ouvido a administração da Transtejo, “não faria sentido perguntar ao nomeado se tinha sido bem nomeado”. “De qualquer forma, a versão do próprio está patente na peça publicada online e ainda disponível para vossa consulta”, acrescentam, referindo-se a um texto publicado dias depois da reportagem ter sido transmitida.
  8. Relativamente ao visado, adiantam os autores da reportagem que o diretor “sente-se confortável com a peça publicada e já o deixou expresso à RTP, não tendo sequer exercido direito de resposta como lhe assistiria caso se tivesse sentido ofendido”.
  9. Dizem, por isso, não conceber “que terceiros possam sentir-se mais ofendidos do que o próprio visado ao ponto de fazerem queixa ao Sindicato, quando o próprio – pelo que vemos – não o fez e, perante a RTP, tem a situação devidamente esclarecida”.

 

Análise

Tendo em conta toda a argumentação acima descrita, o Conselho Deontológico considera:

  1. Sobre a legitimidade do pronunciamento:
    1. O Conselho Deontológico lembra que é um órgão de autorregulação de jornalistas e que a sua intervenção incide sobre todos os temas relacionados com a deontologia do jornalismo que considere pertinente, sejam ou não objeto de queixa.
    2. Em conformidade com o expresso no seu regulamento, são atribuições do CD “pronunciar-se sobre aspetos de caráter ético e deontológico da conduta profissional dos jornalistas nos casos que lhe sejam apresentados por qualquer pessoa individual ou coletiva”.
    3. O regulamento do CD atribui como competência deste órgão a emissão de pareceres sobre queixas ou exposições, a difusão de comunicados e a elaboração de recomendações, estudos e relatórios “sobre questões profissionais e deontológicas pelas quais seja consultado pelos diversos órgãos do Sindicato dos Jornalistas, por qualquer jornalista e por qualquer pessoa individual ou coletiva ou instituição pública ou privada”.
  2. Sobre as queixas:
    1. Tendo em conta a informação recolhida, o CD considera que o trabalho feito pelos jornalistas na reportagem “Transtejo a meio gás”, emitida a 22 de outubro, poderia ter dado uma visão mais abrangente da experiência profissional do principal visado, o diretor de manutenção da Transtejo,
    2. A consulta da página de Linkedin do atual diretor de manutenção da Transtejo não deveria ter bastado para apurar a verdadeira da experiência em manutenção de navios daquele responsável, uma vez que ela é essencial para poder relacionar as falhas na operacionalização dos navios da Transtejo com a sua nomeação.
    3. Considera ainda que as respostas dadas pela empresa na reportagem televisiva são genéricas, pois dizem apenas que este responsável tem “todas as competências necessárias ao exercício do cargo”.
    4. Uma vez que o visado na notícia era um diretor em concreto, considera o Conselho Deontológico que, se ele tivesse sido contactado nesta fase, provavelmente teria reagido às críticas e explicado a sua experiência na área da manutenção, como acabou por fazer posteriormente, numa posição vertida apenas no texto disponibilizado online no site da RTP a 28 de outubro, seis dias depois de a reportagem televisiva ter sido emitida.
    5. Não foi possível perceber se a posição do diretor de manutenção da Transtejo que aparece no texto publicado a 28 de outubro surge por iniciativa deste ou se acabou posteriormente por ser contactado pelos jornalistas.
    6. A posição do diretor de manutenção da Transtejo não consta da reportagem televisiva transmitida a 22 de outubro e apenas consta de uma notícia publicada no site no dia 28 de outubro.
    7. Nesse texto, manifestando-se indignado com as críticas, o diretor da Transtejo garantiu que está ligado à manutenção naval há cerca de 26 anos, explicando que ingressou em 1993 no Arsenal do Alfeite, estaleiro Naval, na altura pertencente à Marinha Portuguesa “que se dedica à manutenção de navios de alta complexidade tecnológica”:
      “Exerci as funções na área tecnológica de telecomunicações tendo sido nomeado para chefe desse mesmo serviço em 30 de Janeiro de 2004 (serviço responsável pela manutenção de todos os sistemas de telecomunicações dos navios da Marinha Portuguesa), e posteriormente, em 2 de setembro de 2012, nomeado para chefiar a Divisão de Sistemas de Combate e Comunicações (divisão com a missão de instalação e manutenção de todos os sistemas eletrónicos, armamento ligeiro, armamento pesado, mísseis, torpedos e minas marítimas)”, acrescenta.

 

Deliberação

Pelo exposto, o CD considera que aos espetadores deveria ter sido dada desde o início uma mais ampla e completa informação sobre a efetiva experiência prévia em manutenção de navios do atual diretor da Transtejo, antes de assumir o cargo, para que estes pudessem, na posse de toda a informação necessária, tirar as suas conclusões relativamente à relação deste facto com a atual situação da frota da empresa.

O CD considera que esta situação poderia ter sido esclarecida na própria reportagem através da audição do diretor, tanto sobre a alegada falta de experiência profissional ou habilitações, como sobre o alegado uso indevido do título de ‘engenheiro’.

O Conselho Deontológico considera que o jornalismo não é uma prática entre jornalistas e fontes de informação, mas, antes, funda a sua razão de ser no papel que desempenha relativamente ao público.

Nesse sentido, ao contrário dos autores da reportagem, não se estranha “que terceiros possam sentir-se mais ofendidos” que os visados pelas notícias ou mesmo quando estes considerem a sua situação esclarecida. Pelo contrário, considera o Conselho Deontológico que questionar os jornalistas e os órgãos de autorregulação é um direito que decorre da sua qualidade de cidadãos e que a resposta às perguntas formuladas é um dever de prestação de contas dos jornalistas e dos media perante o público que servem.

Lisboa, 29 de dezembro de 2021

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas

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