Queixa sobre a cobertura jornalística de julgamento de dirigente desportivo acusado de crimes cometidos na sua vida privada

Queixa sobre a cobertura jornalística de julgamento

de dirigente desportivo acusado de crimes cometidos na sua vida privada

 

  1. Natureza da queixa efetuada ao Conselho Deontológico

No passado dia 20 de julho, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas recebeu uma queixa dos advogados Inês Cardoso e Gonçalo Lello Sampaio contra a jornalista Ana Trocado Marques, correspondente do Jornal de Notícias. Em causa estava a cobertura jornalística do julgamento que envolveu António da Silva Campos, presidente do Rio Ave Futebol Clube, acusado de crimes de perseguição agravada e injúrias à integridade física da sua filha, bem como de injúrias contra a sua ex-mulher.

A queixa apresentada pelos advogados sustenta-se na Constituição da República, que, no seu artigo 32º, ponto 2, refere: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.

Do mesmo modo, são invocados o ponto 8 do Código Deontológico dos Jornalistas, segundo o qual “o jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado”, e o artº 14 – alínea a) do Estatuto do Jornalista, que refere que o jornalista deve “informar com rigor e isenção, rejeitando o sensacionalismo e demarcando claramente os factos da opinião”.

Este princípio inspira-se no ponto 1 do Código Deontológico, segundo o qual “o jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público”.

O Estatuto do Jornalista é ainda invocado na queixa apresentada, nas alíneas e) e f) do artº 14, que referem, respetivamente, a necessidade de se “procurar a diversificação das (…) fontes de informação e ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos” objeto de tratamento jornalístico, assim como da necessidade de identificar, como regra, as suas fontes de informação, e atribuir as opiniões recolhidas aos respetivos autores”. Estes aspetos estão também previstos respetivamente nos pontos 1 e 7 do Código Deontológico.

Aspetos como o sensacionalismo, ponto 2 do Código Deontológico, e a ausência, publicamente manifesta, de uma atitude de independência por parte da jornalista em relação às partes em litígio são também apontados.

Consideram os advogados de António da Silva Campos que a cobertura jornalística de Ana Trocado Marques visou “obter maior impacto mediático”, procurando envolver o Rio Ave, “uma Instituição que nada tem a ver com os acontecimentos em causa, pondo em causa o bom nome e a estabilidade moral e até funcional e financeira da mesma”. De forma objetiva, é referido que a jornalista, dentro das instalações do tribunal, e mesmo fora delas, “acompanhou sempre a filha e ex-mulher” de António da Silva Campos, chegando ao ponto de, “numa parte reservada” do tribunal, revelar “grande cumplicidade com as mesmas”.

“Em todas as sessões, mas em particular na sessão realizada no dia 12 de julho de 2022, a senhora jornalista manteve-se próximo da parte que espoletou o processo-crime contra o meu constituinte, sempre em constante diálogo e cumplicidade, como se de uma parte ou até mesmo testemunha das mesmas se tratasse”, tendo mesmo sido vista a abraçar a filha de António da Silva Campos.

Esta atitude ter-se-á consubstanciado, segundo os advogados, em conteúdos noticiosos que revelam “falta de isenção e sobretudo a falta do cumprimento do dever do ‘contraditório’,  existindo da parte de Ana Trocado Marques “uma dificuldade em querer confrontar os factos e ouvir todos os intervenientes”, nomeadamente o acusado.

Essa falta de isenção foi considerada manifesta também no tratamento jornalístico efetuado, devido:

  1. a) a “uma insistente deturpação dos factos quando descreve pormenores ou aspetos que, mesmo depois de ser esclarecida sobre os mesmos, opta por uma interpretação e narrativa propositadamente errónea, com o intuito de denegrir e formar opinião negativa”, sobre António da Silva Campos;
  2. b) ao tratamento diferenciado das notícias, no que toca à abordagem das audições entre as partes envolvidas.

Referem ainda os advogados que “a entoação’” e a “escolha e dramatização do texto nas citações e seu enquadramento pretende criar cenários contrários deixando bem claro um julgamento prévio de vítima e culpado, influenciando a opinião de quem lê, traçando um veredicto sumário que não cabe à jornalista jamais fazer”.

 

  1. Procedimento do Conselho Deontológico

Em face do exposto, o Conselho Deontológico decidiu endereçar à jornalista, Ana Trocado Marques, as seguintes perguntas:

1)      Confirma as alegadas ligações afetivas e familiares com uma das partes envolvidas no caso em julgamento?

2)      Confirma as manifestações públicas de afetos em espaços reservados do tribunal para com uma das partes envolvidas no caso em julgamento?

3)      Se não confirma nenhum destes aspetos (proximidade afetiva e/ou familiar), existe alguma explicação para a sua presença em áreas reservadas do tribunal e a expressão de afectos para com uma das partes envolvidas no processo?

4)      Como comenta as afirmações dos advogados de António da Silva Campos, nomeadamente no que diz respeito:

  1. a) a um alegado tratamento diferenciado das audições das partes no processo;
  2. b) à insistência noticiosa em factos já esclarecidos em tribunal;
  3. c) à associação de António da Silva Campos ao Rio Ave, num processo judicial de contornos familiares;
  4. d) de não ter procurado conhecer a versão de António da Silva Campos acerca dos factos que lhe foram imputados;
  5. e) de alegadamente ter procurado dramatizar e sensacionalizar os acontecimentos, tentando influenciar a opinião dos leitores da culpabilidade de António da silva Campos?

5)      Como comenta a afirmação dos advogados de António da Silva Campos acerca da apresentação da empresa de construção como falida, em vez de empresa em Processo Especial de Revitalização (PER), com um plano de recuperação aprovado, alegadamente, “mesmo depois de ter sido esclarecida” a diferença entre as duas situações?

Com vista a uma melhor compreensão do processo por parte do Conselho Deontológico, foram igualmente solicitados esclarecimentos adicionais aos advogados de António da Silva Campos, nomeadamente:

1) se poderiam especificar quais os factos que consideram terem sido deturpados, ou esclarecer se a expressão se refere à cobertura noticiosa na sua generalidade;

2) se, relativamente às passagens referentes ao teor opinativo das notícias, se referem a algumas passagens em concreto ou se a expressão visa o teor geral das notícias publicadas.

Finalmente, o Conselho Deontológico deu conhecimento à direção do Jornal de Notícias do teor das questões endereçadas à jornalista, autora das notícias, para o caso de pretender adiantar ou esclarecer algum aspeto, perguntando especificamente se o conteúdo das referidas peças noticiosas é da inteira responsabilidade da jornalista, Ana Trocado Marques, ou se houve intervenções assinaláveis dos editores nas notícias e nos respetivos títulos.​

 

III. Respostas das partes envolvidas na queixa

  1. Resposta da jornalista Ana Trocado Marques

 Em resposta às diligências efetuadas pelo Conselho Deontológico, a jornalista Ana Trocado Marques referiu ter conhecido cada uma das partes envolvidas no caso objeto das suas notícias  “no âmbito dos processos judiciais em curso”, não tendo “falado antes com nenhum deles”, nem existindo “qualquer ligação afetiva ou familiar”.

A jornalista nega a existência de alegadas manifestações de afetos nos espaços reservados do tribunal para com uma das partes envolvidas em julgamento, nos seguintes termos: “Falei com os vários intervenientes do processo – o sr. Campos, a ex-mulher, Manuela Rodrigues, e a filha, Diana, nas várias sessões de julgamento, no âmbito da cobertura noticiosa que estou a efetuar e sempre e apenas nesse âmbito”.

Do mesmo modo, a jornalista do Jornal de Notícias refere que nunca esteve “em áreas reservadas do tribunal”. E acrescenta: “Estive sim, nas várias sessões de julgamento, em áreas públicas do tribunal, onde (…) fui apurando, junto dos vários envolvidos, informações que considerei relevantes para o meu trabalho jornalístico”.

Ana Trocado Marques refuta as acusações de tratamento diferenciado dos acontecimentos, sem audição de todas as partes envolvidas, acrescentando que as notícias publicadas “referem-se apenas e só ao que vai ocorrendo dentro da sala de audiências, em função da audição das diferentes testemunhas e da sentença já proferida referente em um dos processos”. Este argumento está presente na sua resposta à acusação segundo a qual a jornalista não procurou conhecer a versão de António da Silva Campos acerca dos factos que lhe foram imputados em tribunal. Com efeito, a jornalista refere que, incidindo as notícias sobre a cobertura das sessões em tribunal, “o sr. Campos foi ouvido em tribunal e a sua audição mereceu notícia, tal como a audição de todos os outros intervenientes”.

Sublinhando que sobre um dos processos não há ainda qualquer decisão judicial, “apenas versões contraditórias” das duas partes em litígio, a jornalista salienta que o Jornal de Notícias deu igual relevância de tratamento à acusação e à defesa, tendo sido ainda noticiada a absolvição de António da Silva Campos num dos casos em que era acusado pela sua ex-mulher e que já recebeu o pronunciamento do tribunal.

Na mesma linha de defesa da queixa sobre a sua cobertura noticiosa, a jornalista recusa ter procurado dramatizar ou sensacionalizar os acontecimentos, de modo a influenciar a opinião dos leitores da culpabilidade de António da Silva Campos. Ao contrário, refere que, no seu trabalho, se limitou a relatar “o que aconteceu dentro da sala de audiência, na presença da juíza do processo, da procuradora do Ministério Público e dos advogados”.

Ana Trocado Marques responde também à estranheza manifestada pelos advogados de defesa de António da Silva Campos pelo facto de a jornalista insistir em referir-se à empresa de construção do seu constituinte como falida, em vez de empresa em Processo Especial de Revitalização (PER), com um plano de recuperação aprovado, “mesmo depois de [lhe] ter sido esclarecida” a diferença entre as duas situações. Escreve a jornalista sobre o assunto: “A construtora ASC teve dois PER chumbados e tem vários processos em curso no tribunal, um dos quais pelo despedimento de largas dezenas de trabalhadores que, até hoje, ainda não receberam as indemnizações a que, legalmente, teriam direito, nem voltaram a ser reintegrados. Há ainda milhões em dívidas por pagar, centenas de credores e património a ser vendido em leilão. Foi isto que foi relatado na notícia”.

Acerca da legitimidade de tratamento jornalístico de factos da vida privada de um dirigente de futebol, Ana Trocado Marques defende que António da Silva Campos é presidente do Rio Ave Futebol Clube, considerando que, nesse sentido, é um dever e uma obrigação dos jornalistas informar o público. E acrescenta: “Sabemos que a notícia atinge outras proporções quando se diz que o sr. Campos é o presidente do Rio Ave FC, mas também não acontece o mesmo quando o cargo no clube é usado para fazer um peditório, ajudar uma causa social ou uma instituição? É um cargo público que ocupa e para o qual foi eleito. Os leitores têm o direito de ser informados”.

Ana Trocado Marques assume a responsabilidade dos trabalhos realizados. Quanto a possíveis alterações dos seus textos no processo de edição, a jornalista refere não se recordar que tal situação tenha ocorrido, adiantando, no entanto, que, quando essas situações acontecem, elas são feitas em resultado de um processo consensualizado com os editores.

 

  1. Resposta da direção do Jornal de Notícias

Por seu lado, Inês Cardoso, diretora do Jornal de Notícias, respondeu ao Conselho Deontológico considerando que as questões colocadas relativamente à natureza concreta da cobertura jornalística são da “área da competência da jornalista que se encontra muito mais habilitada do que a Direção a pronunciar-se. Refere a diretora do Jornal de Notícias que as questões em análise envolvem fontes de informação, adiantando não ser timbre do jornal “a ingerência nas fontes ou em geral no trabalho efetuado pelos jornalistas”, a quem é concedida “a máxima autonomia”.

No entanto, Inês Cardoso salienta que a jornalista merece da parte do jornal a “máxima credibilidade”, nunca tendo dado quaisquer motivos para dúvidas ou reservas “em relação à seriedade, rigor e competência com que desenvolve” o seu trabalho, manifestando, por isso, “total solidariedade e confiança” para com Ana Trocado Marques.

Relativamente a eventuais intervenções nos conteúdos, mais especificamente nos títulos das notícias, Inês Cardoso – na linha do que já havia respondido a jornalista Ana Trocado Marques – refere que, a sucederem, elas “são sempre consensualizadas com os jornalistas do JN e na linha dos artigos elaborados pelos seus autores, o que neste caso também aconteceu”.

 

  1. Resposta dos advogados de António da Silva Campos

Em resposta ao pedido de esclarecimento solicitado pelo Conselho Deontológico, no sentido de concretizarem melhor alguns aspetos da queixa apresentada, os advogados de António da Silva Campos consideram “que cabe ao jornalista manter uma postura imparcial e ‘distante’ perante os factos e/ou as pessoas que são sujeitos da notícia para garantir uma narrativa precisa e descritiva sem qualquer influência ou juízo próprio”. Essa exigência, segundo insistem os advogados, terá sido quebrada quando a jornalista associou ao processo situações referentes à vida empresarial de António da Silva Campos. Nesse sentido, segundo os advogados, a jornalista fez “questão de apresentar os números de uma dívida que terá levado a tal, sabendo que, e depois de ter sido esclarecida por mais do que uma vez por nossa iniciativa, que o que existe é um plano de recuperação, aprovado e que está a ser cumprido junto dos credores. Tal facto nunca é mencionado ou dada relevância, optando sempre pelo rótulo negativo da falência, insolvência e das verbas em dívida”. Para o efeito são identificados os excertos que se seguem:

“…este foi também o motivo que levou à falência de uma das maiores construtoras do país, a ASC, com dívidas de 26 milhões de euros” (JN, 6 de Julho de 2022);

“Insolvência 25,7 milhões de euros, era o valor da dívida da insolvente ASC a 858 credores em 2017(…)” (JN, 9 de Julho de 2022)

Existem dois outros elementos que denunciam a falta de distanciamento na cobertura jornalística, segundo os advogados de António da Silva Campos: 1) o relato “dramático” – na descrição da própria jornalista – de uma das pessoas envolvidas “conferindo ao texto um peso negativo e tendencioso para quem o lê”, sem “qualquer referência à defesa ou qualquer relato da defesa”; 2) e o comportamento da jornalista “após a sessão do julgamento”, no dia 12 de julho, confortando a filha e autora do referido relato dramático do processo contra António da Silva Campos.

Sobre a proximidade familiar existente entre a jornalista e as pessoas envolvidas no processo em julgamento, objeto de um dos pontos do pedido de esclarecimento adicional do Conselho Deontológico, os advogados nada adiantaram.

 

  1. Análise da queixa por parte do Conselho Deontológico

Em função da queixa apresentada acerca da cobertura jornalística de Ana Trocado Marques, o Conselho Deontológico considerou existirem três aspectos distintos merecedores de análise:

1) a legitimidade da cobertura noticiosa do “acontecimento”;

2) a proximidade real ou manifesta da jornalista com uma das partes da acusação, no caso em julgamento;

3) o tratamento jornalístico do julgamento.

 

  1. A legitimidade da cobertura noticiosa do “acontecimento”.

As notícias do Jornal de Notícias sobre o julgamento de António da Silva Campos incidem sobre acusações de atos da vida privada, realizados contra familiares, que configuram crimes. Do ponto de vista deontológico, a cobertura jornalística destes casos é regulada pelo ponto 8 e 10 do Código Deontológico dos jornalistas onde se diz, respetivamente, que o jornalista “deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado” e que o “o jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos, exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende”.

Salvo algumas saudáveis exceções, os códigos deontológicos do jornalismo são parcos quanto à definição do conceito de “interesse público” no jornalismo. Se, de uma forma geral, se considera que as figuras públicas estão sujeitas a um maior escrutínio da sua vida privada, imperioso é reconhecer que este princípio é aplicado, por vezes, tendo por base critérios duvidosos, nomeadamente quando não há ligação aparente entre o estatuto público ocupado pelas pessoas e os acontecimentos privados de que são objeto noticioso, comprometendo a legitimidade de invocação de interesse público.

O argumento usado por Ana Trocado Marques pode ser, a este título, exemplificativo desta prática, em particular quando constata: “Sabemos que a notícia atinge outras proporções quando se diz que o sr. Campos é o presidente do Rio Ave FC, mas também não acontece o mesmo quando o cargo no clube é usado para fazer um peditório, ajudar uma causa social ou uma instituição? É um cargo público que ocupa e para o qual foi eleito. Os eleitores têm o direito de ser informados”.

A leitura literal desta afirmação é uma porta escancarada para a violação da vida privada de quantos detêm cargos que contenham uma dimensão pública. Para além disso, na sua sustentação acerca da legitimidade do tratamento noticioso, a jornalista compara acontecimentos e estatutos diferentes mas que parecem estar ligados por uma atuação pública mais ou menos evidente: dirigente de um clube desportivo; peditório; envolvimento numa causa social. Ao contrário, o mesmo já não acontece com as notícias acerca do processo que envolve António da Silva Campos e os seus familiares sobre factos alegadamente ocorridos no âmbito privado.

Outra coisa, poder-se-á dizer, será a natureza criminal dos factos de que é acusado António da Silva Campos e de cuja culpabilização pode resultar num julgamento público acerca do perfil da sua pessoa no exercício de determinada função.

Os critérios sobre a noticiabilidade de factos da vida privada de uma pessoa com responsabilidades públicas não estão estabelecidos e são, frequentemente, objeto de controvérsia. Sobre este assunto refere Paulo Martins na sua tese de doutoramento, onde trata especificamente desta problemática:

Sendo o estatuto do envolvido incontornável na determinação do interesse público, é necessário proceder, previamente, à avaliação de duas componentes: posição social – se se trata de celebridade, de detentor de cargo público ou de eleito – e influência da conduta a revelar no seu desempenho. Num segundo momento, importa apurar se o público deve tomar conhecimento, para ficar habilitado a decidir, sobretudo quando estão em causa opções eleitorais. O reconhecimento de que estes passos são imprescindíveis demonstra que a condição da figura pública não autoriza, por si só, a invasão da privacidade, que constitui sempre um ato de indiscrição, ainda que legítimo. Porém, a invocação da reserva da vida privada também não pode instituir-se como um obstáculo à denúncia de situações anómalas ou irregulares, uma das missões do jornalismo. (Paulo Martins (2023). O privado em público. Almedina, pp. 238-239)

É legítimo sustentar que a circunstância de estarmos perante duas acusações sobre factos suscetíveis de serem considerados crime, suspeitos de terem sido cometidos por um dirigente de um clube português, uma instituição com responsabilidades na formação de jovens e de valores comunitários, justifica a invocação do interesse e do escrutínio público. Nestas circunstâncias, parece-nos ser difícil dissociar os factos de que é acusado António da Silva Campos das funções que desempenha no Rio Ave Futebol Clube. De facto, a noticiabilidade resulta de estarmos perante acusações de crime e de a pessoa em causa ser uma figura pública. 

 

  1. A proximidade real ou manifesta da jornalista com uma das partes da acusação, no caso em julgamento

Sobre as alegações acerca de eventuais proximidades da jornalista com uma das partes envolvidas no processo, o Conselho Deontológico não conseguiu apurar a existência de ligações familiares. Deste modo, decidiu confiar na palavra da jornalista, tendo também em conta que esse aspeto não foi elucidado na resposta ao pedido de esclarecimento efetuado pelo Conselho Deontológico junto dos advogados de António da Silva Campos.

Relativamente à proximidade geográfica, considera o Conselho Deontológico que o jornalismo confronta-se sempre com o dilema de encontrar o justo ponto que lhe permita uma cobertura noticiosa capaz de assegurar uma descrição mais correta sobre os acontecimentos narrados. Uma das razões da existência de uma rede de correspondentes e colaboradores dos media visa assegurar um acesso rápido e atempado aos acontecimentos, alertar as sedes dos media sobre factos dignos de notícia e, tirando partido do seu conhecimento da região e das fontes do espaço geográfico onde trabalha/vive, conseguir construir narrativas mais descentralizadas, aprofundadas e compreensivas sobre os acontecimentos.

 Sobre as manifestações de afetividade alegadas e reiteradas pelos advogados relatores da queixa apresentada, elas são liminarmente negadas por Ana Trocado Marques e o Conselho Deontológico não conseguiu reunir provas que lhe permitam posicionar-se sobre a matéria.

Em abstrato, o Conselho Deontológico considera que a forma de recolha de informação por jornalistas, em particular em espaços públicos, implica um saber estar na profissão que não recomenda atitudes exuberantes e manifestações de afeto que possam comprometer o distanciamento do jornalista perante as suas fontes e perante o público que também pode estar a assistir à realização do seu trabalho. Não obstante, dada a complexidade e diversidade dos casos envolvidos, também reconhece o Conselho Deontológico que a natureza muito diversa de situações com que o jornalista é confrontado na sua cobertura jornalística o podem envolver, inesperadamente, em situações de proximidade afetiva, mais resultantes do dever de humanidade do que do dever profissional de informar. De qualquer modo, estas situações serão sempre de evitar, sobretudo quando podem ter implicações na natureza da cobertura ou na leitura que o público pode fazer do trabalho jornalístico em causa.

 

  1. Sobre o tratamento jornalístico do acontecimento

Acerca do tratamento jornalístico do acontecimento, o Conselho Deontológico considerou dever pronunciar-se sobre os elementos da queixa referentes a) à dramatização e sensacionalismo, b) à não audição das partes envolvidas e c) à negatividade da informação divulgada, consubstanciando uma falta de equilíbrio e a tomada de partido por uma das partes.

 

  1. a) Sobre o caráter dramático e sensacionalista do texto

A queixa acerca da dramatização/sensacionalismo da narrativa jornalística de Ana Trocado Marques é respondida pela jornalista com o argumento de que apenas se limitou a relatar “o que aconteceu dentro da sala de audiência, na presença da juíza do processo, da procuradora do Ministério Público e dos advogados”. O argumento remete-nos para a questão sobre até que ponto é possível conciliar narrativas distanciadas para assegurar o rigor da informação sobre acontecimentos que são, por natureza, dramáticos. Ainda assim, deve notar-se que o mesmo jornalista que se recusa ficar remetido ao papel de pé de microfone, também não se deve sentir refém da dramaticidade dos “factos”, começando por distinguir o drama que as pessoas envolvidas colocam num acontecimento e a sua repercussão para o interesse público.

O mesmo já não se dirá sobre o sensacionalismo que é um desvio deontológico, muito embora com contornos pouco definidos. O sensacionalismo pode ser também considerado um desvio à compreensão racional de um facto ou de um acontecimento e não se resume apenas à descrição dos factos, mas também à sua seleção, aos enfoques dados em aspetos de natureza privada, ao pormenor dado à descrição dos factos, aos termos usados, e à exaustividade da cobertura jornalística.

O tratamento dado ao julgamento e à natureza das acusações contém, no entendimento do Conselho Deontológico, vários aspetos relacionados com o que acabámos de referir, nomeadamente no que se refere à descrição dos insultos envolvidos – alguns dos quais com estatuto de lead –, a pormenorização de factos e expressões objeto de acusação e a exaustividade da cobertura jornalística  objeto das publicações a 6, 9 e 13 de julho, com dimensões superiores a um quarto de página, num dos casos, e a meia página nos outros dois casos.

 

  1. b) Sobre a não audição das partes envolvidas

Sobre a não audição das partes envolvidas no processo, a jornalista Ana Trocado Marques acrescenta que as notícias publicadas se referem “apenas e só ao que vai ocorrendo dentro da sala de audiência, em função da audição das diferentes testemunhas”. Neste sentido, pode sustentar-se, que a audição das partes envolvidas pela jornalista decorre da própria cobertura do processo, tanto mais que ele não resulta de uma investigação da própria jornalista. De resto, é notório que o Jornal de Notícias teve o cuidado de dar o mesmo espaço noticioso à apresentação em tribunal quer dos argumentos da acusação quer dos argumentos da defesa.

 Ainda assim, considerando válido este argumento, o Conselho Deontológico não deixa de notar que o tratamento dado no interior dos textos não decorreu exatamente deste modo. Com efeito, se na audição de 13 de julho foi dada ampla cobertura à acusação, sem qualquer referência aos argumentos da defesa, o mesmo não aconteceu na edição do Jornal de Notícias de 6 de julho onde os argumentos de defesa de António da Silva Campos são contrapostos com os factos apresentados pela acusação.

Quando se opta pela cobertura de um acontecimento como o ocorrido num tribunal, os jornalistas podem ser confrontados com situações em que apenas são expostos os argumentos de uma das partes. Os jornalistas, porém, não podem deixar de ter em conta que o público que tem acesso à informação de um dia pode não ter condições de acompanhar os desenvolvimentos nos dias seguintes ou anteriores, ficando a sua opinião limitada à posição de uma das partes. Quando isso acontece como uma inevitabilidade, os jornalistas têm ao seu dispor um conjunto de recursos que podem mitigar esta situação: desde logo, chamando a atenção do público sobre a parcialidade da informação em resultado da cobertura de um acontecimento em desenvolvimento, fazendo contextualizações, ainda que breves, sobre o assunto, referenciando outros textos com versões diferentes ou sobre os mesmos factos, e dando nota do compromisso do media na prossecução da cobertura total dos acontecimentos. Nada disto aconteceu com o texto de 13 de julho do Jornal de Notícias.

Tendo em conta os elementos de que o Conselho Deontológico dispõe, entre a primeira peça em que são apresentados os argumentos de António da Silva Campos – contrapostos com os factos alegados pela acusação – e a peça em que é dada voz ao testemunho de uma das alegadas vítimas do processo, decorrem sete dias. Em função desse hiato de tempo, era expectável que se fizesse um tratamento idêntico àquele efetuado sobre os argumentos da defesa. De outro modo, não é possível dizer-se que o público do Jornal de Notícias, que apenas leu a edição do dia 13 de julho, tenha ficado informado acerca das duas versões sobre os factos presentes em tribunal.

 

  1. c) Sobre a negatividade da informação divulgada, consubstanciando uma falta de equilíbrio e a tomada de partido por uma das partes.

Os advogados de António da Silva Campos consideram que Ana Trocado Marques acabou por não fazer uma cobertura equidistante do acontecimento por, entre outros argumentos já aqui expostos, deturpar os factos “quando descreve pormenores ou aspetos que, mesmo depois de ser esclarecida sobre os mesmos, opta por uma interpretação e narrativa propositadamente errónea”. Em causa está o facto de a situação económica da empresa ASC ser apresentada como insolvente e não num Programa Especial de Revitalização. Se insolvente diz respeito a devedores, pessoa singular, empresa ou outra pessoa coletiva que, num determinado momento, se encontra incapaz de cumprir as suas obrigações, o Programa Especial de Revitalização é um processo judicial dirigido a empresas que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda sejam suscetíveis de recuperação por terem viabilidade económica. Por isso, o programa de recuperação especial implica negociações com os respetivos credores, com vista à aprovação de um plano de recuperação, conferindo-lhe a possibilidade de continuar a exercer a sua atividade e, assim, evitar a insolvência.

(https://www.guiadasinsolvencias.pt/o-processo-especial-de-revitalizaccedilatildeo-per.html)

 Aos argumentos dos advogados, Ana Trocado Marques contra-argumenta com um aspeto cuja veracidade não se pretende pôr em causa, mas que é lateral ao que está em discussão:

 “A construtora ASC teve dois PER chumbados e tem vários processos em curso no tribunal, um dos quais pelo despedimento de largas dezenas de trabalhadores que, até hoje, ainda não receberam as indemnizações a que, legalmente, teriam direito, nem voltaram a ser reintegrados. Há ainda milhões em dívidas por pagar, centenas de credores e património a ser vendido em leilão. Foi isto que foi relatado na notícia”.

 Tendo isso, de facto, sido relatado, também não é menos verdade que, por duas vezes, a ASC foi apresentada como estando falida e insolvente. Se, como dizem os advogados, a jornalista foi atempadamente chamada à atenção para este facto, não só não se percebe que não tenha procurado inteirar-se do rigor dessa informação como insistido no erro.

 Parece-nos também ser digno de nota que os advogados vejam nesta situação o indício sobre a atitude de falta de isenção da jornalista, procurando dar “um peso negativo e tendencioso para quem ([…] lê” a notícia. Embora os advogados se refiram objetivamente ao texto de 13 de julho, referente ao relato da acusação contra António da Silva Campos, outros aspetos parecem reforçar essa negatividade: a referência à situação difícil da ASC, sem se explicitar a ligação entre os problemas familiares  e as empresas do arguido;  e do próprio texto referente à absolvição de António da Silva Santos num dos casos em causa, envolvendo a sua ex-mulher.

Com efeito, na notícia sobre a absolvição de um arguido não deixa de ser estranho que o enfoque do lead seja dado às dúvidas do juiz e a um outro processo que se segue, dando pouco espaço à presunção da inocência de alguém que acabava de ser inocentado. Num processo em que alguém tenha sido inocentado por falta de provas – a não ser que para isso tenha contribuído diretamente – o ónus não pode recair sobre o acusado, mas sobre a acusação.

 

Conclusão

 Ouvidas as partes envolvidas, pedidos os esclarecimentos considerados necessários e em face da análise dos dados disponíveis, o Conselho Deontológico decidiu:

1)      não considerar fundamentados os motivos para questionar a isenção da jornalista tendo por base proximidades geográficas e familiares;

2)      não dar como provadas as interpretações sobre eventuais gestos de conforto de Ana Trocado Marques para com um dos elementos da acusação no processo contra António da Silva Campos como tratando-se de expressões de “afetividade” comprometedoras da sua isenção jornalística;

3)      considerar legítima a interpretação efetuada pelos advogados de António da Silva Campos acerca de alguns traços sensacionalistas da cobertura jornalística;

4)      considerar que a cobertura noticiosa efetuada na edição do dia 13 de julho sobre o julgamento não foi realizada com equilíbrio, nem de forma a assegurar uma informação completamente rigorosa e distanciada dos leitores do Jornal de Notícias.

Pela leitura das notícias objeto da análise do Conselho Deontológico, o Jornal de Notícias deixa-nos uma imagem amalgamada de António da Silva Campos: um dirigente desportivo, com empresas falidas e dívidas avultadas, acusado de vários crimes resultantes do seu comportamento para com membros da sua família, tendo conseguido passar entre os pingos da chuva da justiça, graças a uma decisão da juíza que aplicou o princípio in dubio pro reo, face às dúvidas acerca da veracidade dos factos que lhe foram imputados. António da Silva Campos pode ser tudo isso e/ou até muito pior do que isso. Mas, na ausência de elementos que permitam estabelecer a verdade dos factos, bem como uma ligação entre eles, de modo a constituir um perfil, o Jornal de Notícias não pode deixar de admitir que António da Silva Campos talvez seja apenas uma pessoa com muitos problemas e, desse modo, tratá-los como tal.

Este parecer foi aprovado com os votos favoráveis de Carlos Camponez, Susana Oliveira, Marcos Borga e Catarina Santos. Desde o início, João Paulo Meneses pediu escusa de participar na averiguação, análise, decisão e votação do caso.

Lisboa, 27 de setembro de 2022

O Conselho Deontológico

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