Queixa do Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz

Conselho Deontológico

Queixa nº 37/Q/2020

Assunto

  1. Queixa do Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz, Filipe de Sousa, contra o jornalista André Carvalho Ramos, ao serviço da TVI.

Queixa

  1. Em referência a uma reportagem difundida em 19 de setembro de 2019, no Programa “Ana Leal”, da TVI, sobre as relações entre a Câmara Municipal de Santa Cruz, na Madeira, o partido Juntos Pelo Povo (JPP) e a sociedade de advogados Santos Pereira & Associados, recebeu o Conselho Deontológico uma queixa do presidente daquela autarquia, Filipe de Sousa.
  2. No essencial, o queixoso:
    • Alega que a reportagem apresenta como ilegal “um contrato perfeitamente legítimo e legal”.
    • Questiona o “timing” da reportagem, emitida a poucos dias das eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
    • Afirma que os factos foram manipulados com o propósito de transmitir “a imagem” de que “a autarquia de Santa Cruz tinha feito um contrato com um ‘amigo’ do partido JPP”.
    • Alega que a peça omite que “os primeiros contratos” foram celebrados numa altura em que o JPP não era um partido, mas uma lista de cidadãos, e em que os seus membros não conheciam “nenhum dos elementos” da referida sociedade de advogados, omitindo igualmente o facto de um dos sócios se ter filiado no JPP “mais tarde”.
    • Salienta que os factos omitidos tinham sido oportunamente referidos ao autor nas entrevistas concedidas.
    • Afirma que as declarações do presidente da Câmara Municipal, Filipe Sousa, e do advogado Miguel Pereira foram “truncadas” de modo a conformarem-se com a “versão premeditada pelos jornalistas, ou por quem encomendou a reportagem”.
    • Sustenta que “apesar das explicações dadas, a notícia foi vendida como um contrato feito com um amigo do partido, o que é totalmente falso”.
    • Conclui ter sido violado o disposto no n.º 1 do Código Deontológico do Jornalista e nas alíneas a), c) e h) do Art.º 14.º do Estatuto do Jornalista

Procedimentos

  1. O Conselho Deontológico abriu um processo de apreciação da queixa, tendo solicitado ao jornalista visado, por correio electrónico de 17 de Janeiro de 2020, resposta às imputações supra.
  2. Após duas insistências, pela mesma via, em 20 de Fevereiro e 2 de Março, veio o mesmo a responder, através de advogado, no dia 4 desse mês.

Análise

  1. O jornalista começa por questionar a forma de procedimento adoptada pelo Conselho, baseada numa síntese da queixa produzida, alegando desconhecer o conteúdo integral da mesma, os factos e alegações de que é acusado, bem como motivos, os factos e o direito que conduziram à abertura do processo.
  2. O CD esclarece que seguiu o método habitual, que não afasta o fornecimento da queixa integral, quando solicitada.
  3. Não obstante as reservas manifestadas e o entendimento do visado de que o Conselho Deontológico “não detém qualquer competência legal ou funcional para apreciar” a sua conduta, por não ser associado do Sindicato dos Jornalistas, o CD salienta que o mesmo apresentou um detalhado conjunto de esclarecimentos, contribuindo para a presente análise.
  4. No essencial, a resposta:
  5. Sustenta que o presidente da Câmara de Santa Cruz não concretiza o facto falso noticiado ou a acusação sem provas imputados ao jornalista;
  6. Explica que o jornalista não questiona a legalidade do contrato, mas para a oportunidade e fundamentação da escolha;
  7. Sustenta que o timing da reportagem – próximo das eleições regionais – se justifica não só por o dever de informar ser ininterrupto, mas também porque os períodos eleitorais justificam maior escrutínio público;
  8. Explica que não estava em causa a legalidade dos contratos, mas a escolha sucessiva, por repetidos ajustes diretos de elevados montantes, da mesma sociedade de advogados, sendo um deles presidente do Conselho de Jurisdição Nacional e líder da concelhia de Lisboa do JPP, casado com uma advogada assessora do respectivo grupo parlamentar na Assembleia Legislativa Regional da Madeira e tendo aconselhado a transformação da então lista de cidadãos em partido político;
  9. Sustenta que os factos aludidos na reportagem se encontram fundamentados em documentos, aliás de acesso público, no portal de contratos públicos basegov.pt, no qual estão registados sete contratos sucessivos entre a Câmara Municipal e a Sociedade de Advogados objecto do trabalho jornalístico;
  10. Razão pela qual o jornalista considera legítima e adequada o questionamento aos próprios visados sobre a existência de favorecimento, investigando e apurando matéria de relevante interesse público e que aliás estava a ser objecto de auditoria do Tribunal de Contas, vindo a ser depois alvo de inquérito do Departamento de Investigação e Acção Penal do Funchal;
  11. Por conseguinte, o jornalista “não perseguiu, nem difamou quem quer que seja”, antes investigou os factos, cruzou fontes e proporcionou “a todos (os visados) tempo e oportunidade para explicarem as suas posições e esclarecerem o que entendessem, como entendessem”;
  12. Acrescenta que, “como resulta da reportagem”, o presidente da Câmara e o advogado “tiveram todo o tempo e oportunidade para esclarecer a situação” e que “não foi omitido na reportagem nenhum elemento ou argumento que tenha resultado das entrevistas concedidas”;
  13. Conclui que é patente não ter violado nenhuma disposição legal ou deontológica, “pois informou com rigor e isenção” baseado em provas, assim como não violou a garantia de presunção de inocência de ninguém, por “não ter imputado qualquer facto criminalmente punível a nenhuma pessoa singular ou coletiva”.
  14. Tendo visionado a reportagem em causa o Conselho verificou que, nela:
  15. A própria apresentadora do programa assume a emissão na proximidade muito imediata das eleições regionais;
  16. Não há qualquer imputação de ilegalidades, mas sim a afirmação de que os contratos celebrados entre a autarquia e a sociedade de advogados em causa levantou dúvidas que estavam a ser investigadas pelo Tribunal de Contas;
  17. Se centra a abordagem na sucessão de sete contratos no valor de um milhão de euros celebrados com a mesma sociedade, sem que tenham sido consultadas outras;
  18. Assim como na existência de relações cruzadas de natureza profissional, familiar e política, o que justificaria o questionamento jornalístico, sendo as mesmas explicadas pelos próprios intervenientes;
  19. Fica claro que o autarca está persuadido da legalidade e da razoabilidade dos procedimentos adoptados, reiterando por diversas vezes que voltaria a segui-los, por entender serem vantajosos para o município.

Deliberação

  1. O Conselho Deontológico entende começar por salientar que, independentemente da condição de sindicalizado do alvo de qualquer queixa, ou mesmo de qualquer iniciativa do CD, é das suas atribuições e competências estatutárias pronunciar-se sobre a conduta dos jornalistas, como de resto está reconhecido em jurisprudência relativa a deliberações deste órgão.
  2. O Conselho Deontológico concluiu que a peça em causa e a sua emissão, independentemente do timing, revestem manifesto interesse público.
  3. O Conselho concluiu também que o jornalista cumpriu o essencial dos deveres relativos à demonstração dos factos e à audição das partes com interesses atendíveis.
  4. Não obstante, a reportagem teria ganho em clareza com a reprodução de algumas respostas de forma mais completa, designadamente a justificação do autarca sobre questões como os ajustes directos, que apenas vemos reproduzida em documentos.

Lisboa, 20 de Abril de 2020

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