Queixa contra a RTP arquivada

A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) decidiu arquivar o processo aberto no seguimento de uma queixa do Sindicato dos Jornalistas a propósito do anúncio da implementação do sistema de videovigilância na RTP, por considerar “estar garantida a regularidade de exercício dos profissionais de informação” da estação.

A AACS fundamenta a sua decisão no facto de a autorização concedida à RTP pela Comissão Nacional de Protecção de Dados para a implementação do sistema de videovigilância fixar “um apertado regime de acautelamento da privacidade dos trabalhadores da RTP, tendo em particular conta os espaços reservados à informação”.

A AACS declara, no entanto, que “permanecerá atenta ao assunto, podendo a todo o tempo reabrir a análise desta problemática.”

É o seguinte o texto, na íntegra, da deliberação da AACS:

DELIBERAÇÃO sobre QUEIXA DO SINDICATO DOS JORNALISTAS ACERCA DA VIDEOVIGILÂNCIA NA RTP

(Aprovada em reunião plenária de 1.JUN.05)

1. A Direcção do Sindicato dos Jornalistas remeteu à Alta Autoridade para a Comunicação Social a seguinte missiva, recebida neste órgão de Estado a 30 de Setembro de 2004:

“A Direcção do Sindicato dos Jornalistas chama a atenção muito urgente de V. Exa. para o seguinte:

1. Invocando motivos de segurança, a Administração da Rádio e Televisão de Portugal, SGPS mandou instalar, nas redacções da RTP, um circuito de videovigilância, o qual inclui, além de câmaras nos acessos a tais instalações, idênticos dispositivos em várias posições que cobrem vários ângulos das próprias salas de Redacção.

2. Além de violar flagrantemente as disposições legais relativas à protecção da privacidade dos trabalhadores e de constituir um meio ilegítimo de vigilância da prestação de trabalho, tal prática é igualmente susceptível de colocar em perigo o dever de sigilo profissional de jornalista, na medida em que nalguns casos é possível a captação de imagens do conteúdo de comunicação através de correio electrónico de jornalistas.

3. Ignora-se se o dispositivo de vigilância referido integra ou não a captação de sons, mas a inquietação e mesmo intimidação produzida pela presença dos equipamentos referidos nos números anteriores induz em muitos profissionais a ideia de que possam existir igualmente microfones de vigilância nas mesmas salas, igualmente em flagrante violação da lei.

4. Acresce que a mesma entidade determinou que o acesso de jornalistas a comunicações telefónicas só possa ser feito mediante a introdução prévia de um código personalizado, o que se traduz:

a) Na possibilidade de controlo e registo do destino das chamadas telefónicas efectuadas, violando assim a garantia da privacidade das comunicações;

b) Na possibilidade de controlo e registo de contactos com fontes de informação dos jornalistas, o que pode por em causa a confidencialidade de muitas delas e a garantia do sigilo profissional dos jornalistas.

Uma vez que o quadro descrito evidencia um conjunto de violações de direitos da personalidade e de garantias constitucionais do exercício da profissão de jornalista, o SJ apela à rápida intervenção de V. Exa., a fim de por termo a tais práticas, bem como a outras que eventualmente venham a ser detectadas.”

2. A Alta Autoridade é competente para apreciar a situação e sobre ela deliberar, atento o disposto nomeadamente nas alíneas a), c), e) e g) do artigo 3º e n) do artigo 4º da lei nº 43/98, de 6 de Agosto.

3. Tendo-se assumido a carta do Sindicato como uma queixa, abriu-se portanto um processo na AACS, tendo sido praticados os seus primeiros actos instrutórios. Entretanto, havendo sido tornado público que a CNPD, Comissão Nacional de Protecção de Dados, tinha avocado o caso e, inclusive, tomado já uma Deliberação, pediu-se confirmação de tal decisão àquele organismo, o qual fez chegar à Alta Autoridade o ofício seguinte, aqui recepcionado em 11 de Novembro de 2004:

“Respondendo ao ofício de V. Exa. nº 2062/AACS/2004, de 29 de Outubro de 2004, informo que no processo pendente nesta Comissão, relativo ao pedido de autorização de instalação de videovigilância apresentado pela RTP, foi proferida deliberação provisória, encontrado-se o mesmo na fase de audição da entidade visada, nos termos do artigo 100º do Código do Procedimento Administrativo.

Logo que proferida a deliberação final neste processo, será a mesma enviada a essa Alta Autoridade.

Aproveito ainda para informar que, na ocasião da emanação daquela deliberação provisória, foi decidido ordenar, desde logo, a suspensão do tratamento de videovigilância nas salas de redacção e de maquilhagem, por se ter considerado que era manifesta e grave, a este respeito, a violação, respectivamente, dos direitos dos jornalistas à confidencialidade e á reserva das fontes, e, ainda, do direito à privacidade, em geral.”

4. Suspendeu-se então a instrução do processo na AACS, uma vez que o assunto estava a ser acompanhado por entidade com competência legal vinculativa na matéria, tendo até, como se viu, a videovigilância na redacção e na maquilhagem da RTP sido suspensa, o que, na prática, suspendia os efeitos reputados negativos pelo Sindicato queixoso enquanto não ocorria decisão definitiva.

5. Finalmente, foi esta Alta Autoridade informada, em ofício que se recebeu a 23 de Maio de 2005, de uma Deliberação definitiva da CNPD acerca do assunto, vazada na Autorização nº 172/05 daquela Comissão.

6. Nesta Autorização, a CNPD autoriza a RTP a colocar em prática um concreto sistema de videovigilância, fazendo-o em determinadas e pormenorizadas condições, que a Autorização detalhadamente especifica. São precisamente essas condições que importa conhecer, salientar e valorizar.

6.1. Do extenso documento de que se trata ficam agora respigados alguns trechos mais interessantes do ponto vista do acompanhamento de sindicância que na circunstância cabe à Alta Autoridade, considerando as suas especiais atribuições e competências. Assim,

“(…)

c) Quanto às câmaras 26 a 28, considera a CNPD que a “segurança real” e as possibilidades de “actuação em tempo real” que os controlos de acessos oferecem em nada é inferior à que as imagens do interior da sala de redacção permite alcançar.

As citadas câmaras 26 a 28 são fixas, não têm capacidade de zoom e não permitem, por qualquer outro modo, imagens com maior detalhe do que aquele que é ilustrado nas páginas numeradas de 75 a 77 anexas às plantas e constantes do 1º Volume destes autos. Desta forma, não constituem um perigo efectivo para o sigilo profissional e segredo das fontes. Todavia, constitui entendimento desta Comissão que a captação e gravação de imagens por essas câmaras se apresenta desproporcionada e excessiva atenta a finalidade pretendida de protecção de pessoas e bens.

De facto, a restrição do direito à privacidade dos trabalhadores que, permanentemente, se encontram sob captação e gravação da sua imagem só deve ocorrer se for necessária (indispensável) à prossecução da finalidade visada. Entende a CNPD que a protecção de pessoas e bens na sala da Direcção de Informação e nos estúdios com os quais aquela sala confina através de uma varanda de cerca de 36 m2 pode ser garantida através da captação e gravação de imagens dos acessos àquela sala e àqueles estúdios, sendo excessiva a captação e gravação de imagens do interior da sala da Direcção de Informação, com a consequente e constante restrição (quase eliminação) do direito à privacidade dos trabalhadores que se encontram nessa sala. Pelo exposto, é proibido à RTP – SGPS, SA, proceder à captação e gravação de imagens na sala de Direcção de Informação através das câmaras 26 a 28.

A instalação destas câmaras permitiria o acompanhamento permanente e pormenorizado do comportamento do jornalista em ambiente de trabalho – independentemente da finalidade do tratamento – o que se manifesta contraditório com o objectivo de assegurar ao trabalhador, enquanto tal, um núcleo básico de privacidade. Não se considera existir um direito ou interesse que deva concretamente prevalecer sobre o direito de reserva da vida privada dos jornalistas.

(…)

f) Quanto à câmara 50, afirma a RTP – SGPS, SA que esta capta imagens para “controlo do acesso de pessoas a esta zona”, referindo-se à zona onde se encontra a fotocopiadora. Fundamenta a RTP – SGPS, SA a necessidade de controlo desse acesso para efeitos de segurança da “pagadoria do serviço de tesouraria, que é um local onde é movimentado muito dinheiro vivo e que, por essa exacta razão, coloca particularíssimos problemas de segurança, revelando-se indispensável controlar o acesso a essa zona”. Na medida e no pressuposto da veracidade destas declarações da requerente, em ordem a manter a coerência com o supra dito na alínea c) (na verdade, também é na linha de coerência do entendimento da requerente, pois esta também considerou, noutros momentos, que a segurança fica diminuída se apenas os acessos forem controlados), deve a câmara 50 captar imagens da “pagadoria do serviço de tesouraria”, abstendo-se de captar imagens da fotocopiadora e de quem quer que a utilize.

g) Por fim, quanto ás câmaras situadas nos locais de circulação, devem estas apenas captar imagens dos locais de entrada e saída dessas zonas, pois a finalidade prosseguida de segurança de bens em casos de pequenos furtos é insuficiente, no juízo de proporcionalidade que não deve perder-se de horizonte, para fundamentar a captação de imagens nas portas e interiores de gabinetes onde os trabalhadores se encontram durante longos períodos do dia, em locais onde se projecta, de resto, alguma privacidade e mesmo intimidade.

(…)”

6.2. Na parte propriamente decisória da Autorização salientem-se as citações a seguir transcritas:

“(…)

No caso concreto temos para nós que se justifica inteiramente que sejam utilizados estes meios de prevenção nas instalações da RTP, no âmbito da protecção de pessoas e bens, na medida em que se tratam de instituições que movimentam equipamentos de elevadíssimo valor económico e de pessoas que desenvolvem actividades de grande notoriedade e exposição com os inerentes riscos pessoais. Assim, a instalação das câmaras funciona como um factor de dissuasão, aumentando a segurança das instalações e, consequentemente, das pessoas e bens.

Com efeito, pretende-se com este tratamento assegurar a prevenção e dissuasão da prática de actos ilícitos – tarefa que é desempenhada na prossecução do interesse público, em complementaridade e subsidiariedade face ás competências das forças e serviços de segurança – podendo a informação recolhida vir a ser utilizada como prova da infracção.

Ora, o que está em causa na utilização destes meios é assegurar a dissuasão, sempre com o conhecimento das pessoas e com a protecção dos seus direitos fundamentais (2) bem como registar e documentar a eventual prática de infracções.

(…)

Depois, no que toca à rede exterior, é suficiente para que a CNPD considere respeitada a Lei de Protecção de Dados a vedação da captação de imagens da via pública e dos espaços exteriores às instalações da RTP – SGPS, SA, conforme a RTP SGPS, SA se comprometeu a fazer. O cumprimento desta prescrição e compromisso é condição de autorização de captação de imagens na rede exterior.

Quanto à câmara 22, ela pode captar imagens nas condições descritas na alínea b) supra enunciada.

No que à sala da Direcção de Informação diz respeito, o tratamento de captação e gravação de imagem levado a efeito pelas câmaras CL-26 a CL-28, é proibido, devendo a requerente abster-se de proceder à captação e gravação de imagens nessa sala.

Também quanto ao tratamento através da captação e gravação pela câmara designada de 17, fica a requerente autorizada nos termos, condições e pressupostos da alínea d) atrás enunciada.

No que se refere à captação de imagens pela câmara 30, fica a RTP – SGPS, SA autorizada a captar imagens de acordo com o estipulado na alínea e) atrás constante.

Quanto à captação de imagens pela câmara 50, deve esta captar apenas imagens da “pagadoria do serviço de tesouraria”, abstendo-se de captar imagens da fotocopiadora e de quem quer que a utilize.

Por fim, quanto às câmaras instaladas nas zonas de circulação entre gabinetes, devem estas apenas captar imagens dos locais de entrada e saída dessas zonas.

(…)

Quanto à segurança da informação, não deve haver acesso à informação das imagens gravadas. Isto é, uma vez que se trata de serviços de auto-protecção organizados pela RTP e complementados por uma empresa devidamente licenciada e detentora de alvará, têm acesso às imagens em tempo real o Director de Segurança da RTP (existindo de acordo com o disposto no artigo 7º do Decreto-Lei 35/2004 de 21 de Fevereiro), o titular do cargo que engloba as competências do actual Secretário-Geral da RTP e o pessoal da empresa de segurança privada. Quanto a estes últimos, o artigo 19º deste Decreto-Lei impõe-lhes o respeito pelo segredo profissional. Quanto aos primeiros, igual respeito pelo sigilo lhes é imposto pelo nº 1 do artigo 17º da LPD.

No entanto, após a captação, às imagens gravadas, não deve haver acesso por quem quer que seja. No caso de notícias ou indícios da prática de crimes, devem as entidades e pessoas acima indicadas actuar junto das entidades competentes – autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal – a quem fornecerão os suportes onde as imagens estão gravadas. No caso de direito de acesso por parte de titulares, só o responsável pelo tratamento, ou quem o represente, deve aceder às imagens gravadas, exclusivamente para esse efeito, com a salvaguarda dos direitos de outros titulares envolvidos.

Quanto ao prazo de conservação dos dados – imagens – o limite máximo é, nos

termos do nº 2 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 35/2004 de 21 de Fevereiro, de 30 dias, findo o qual a gravação deve ser destruída, só podendo ser utilizada nos termos da legislação penal.

(…)”

7. Assim, desta longa e tecnicamente fundamentada Autorização decorre:

7.1. Que a entidade legalmente competente tomou uma decisão autorizadora condicionada à lei e aos direitos em causa devidamente ponderados, e em adequados termos de proporcionalidade, considerando os diversos valores em exame.

7.2. Que a RTP fica cominada a um conjunto complexo de obrigações, deveres e restrições que largamente formatam a actividade de videovigilância no interior da empresa, comprometendo-se a respeitar rigorosamente os termos da Autorização, que está estritamente proibida de ultrapassar.

7.3. Que os direitos de privacidade dos espaços de intervenção jornalística, como é principalmente o caso das salas onde trabalham os trabalhadores da informação, foram expressamente acautelados pela Autorização. Nomeadamente, foi assegurado o direito à escrupulosa informação aos funcionários visando a forma e as circunstâncias da vigilância em cada local onde ela foi instalada.

8. O pormenor, a assertividade e a acutilância da Autorização de que acima ficam transcritos os excertos porventura mais interessantes no enfoque que contende com o acervo de atribuições e competências da AACS afigura-se constituírem garantia bastante de que a liberdade de actuação dos profissionais de informação do operador público de televisão fica apropriadamente protegida. É esse o benefício da dúvida que se concede à situação sequente à decisão da Comissão Nacional de Protecção de Dados, a qual terá resolvido o problema a contento da lei e dos profissionais interessados. A Alta Autoridade, numa postura simultânea de confiança e de cautela, vai pois arquivar o processo que instaurou por causa da queixa do Sindicato dos Jornalistas, sem prejuízo de que se manterá atenta ao evoluir da problemática, podendo a todo o tempo reabrir a investigação, se, eventualmente, se vier a verificar que os direitos a defender podem afinal não estar no caso devidamente protegidos.

9. Logo, em conclusão, tendo verificado que a Autorização nº 172/05 da Comissão Nacional de Protecção de Dados fixa um apertado regime de acautelamento da privacidade dos trabalhadores da RTP, tendo em particular conta os espaços reservados à informação, no que concerne ao sistema de videovigilância a implantar na empresa, a Alta Autoridade para a Comunicação Social considera que em princípio a observância das restrições contidas na Autorização assegurará patamares aceitáveis de protecção daquela privacidade, julgando ainda e por conseguinte estar garantida a regularidade de exercício dos profissionais de informação da RTP em termos de segurança face a hipotéticas intromissões ilícitas naquela privacidade, pelo que decide arquivar o processo aberto aquando de uma queixa que o Sindicato dos Jornalistas lhe fez chegar a propósito do anúncio da implementação do sistema de videovigilância na RTP, sem embargo de declarar que permanecerá atenta ao assunto, podendo a todo o tempo reabrir a análise desta problemática.

Esta deliberação foi aprovada por unanimidade com votos de Sebastião Lima Rego (Relator), Armando Torres Paulo, Artur Portela, José Garibaldi, João Amaral, Manuela Matos, Maria de Lurdes Monteiro, Carlos Veiga Pereira e José Manuel Mendes.

Alta Autoridade para a Comunicação Social, 1 de Junho de 2005

O Presidente,

Armando Torres Paulo

Juiz Conselheiro

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