Queixa contra 4 jornalistas do Novo Semanário por alegadas violações do Código Deontológico

Conselho Deontológico

Queixa nº 3/Q/2021

 

Assunto:

  • No dia 11 de agosto de 2021 o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas recebeu uma queixa em nome de Manuel da Silva Brito, António Júlio Nunes e Rui Alves contra os jornalistas Sílvia Caneco, Bruno Pires, Cátia Andreia e Luís Mota por motivo de alegada violação dos artigos 2º e 8º do Código Deontológico, em duas peças jornalísticas por eles assinadas em 28 de maio de 2021 e 4 de junho de 2021 no jornal Novo Semanário.
  • Os três queixosos desempenham funções de relevo na Autoridade de Dopagem de Portugal (ADoP) e são referidos na primeira notícia como tendo recebido quantias em dinheiro para não suspender preventivamente o jogador Pedro Gonçalves (adiante também identificado pela alcunha de Pote).
  • Na segunda notícia é afirmado que a “Agência Mundial Antidoping [AMA] só soube esta semana do arquivamento do caso Pote” e que “o arquivamento não terá sido imediatamente comunicado à Agência Mundial Antidopagem, mas apenas depois das suspeitas de corrupção avançadas pelo Novo Semanário”.
  • Na base das duas notícias estão duas denúncias enviadas em dezembro de 2020 e janeiro de 2021 ao Ministério Público, que os queixosos dizem serem anónimas, sendo que as notícias do Novo Semanário se referem apenas a “denúncias” e a um “denunciante”.
  • Os queixosos estão contra, por um lado, terem sido identificados, “sendo, para tal efeito, divulgados publicamente os respetivos nomes e cargos”, a partir de uma “denúncia anónima”. Alegam: “ao ter a ousadia de divulgar os nomes dos dirigentes da ADoP, imputando-lhes a prática de crimes de corrupção, ainda que remetendo para uma queixa-crime, os jornalistas, objetivamente, lesaram o bom nome e reputação dos denunciantes,” violando o artigo 2º do Código Deontológico, que refere que “o jornalista deve combater o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas (…) como graves faltas profissionais”. Por outro lado, considerando a segunda notícia “falsa” e “sensacionalista”, os queixosos também invocam o artigo 8º do Código Deontológico, que “refere que o jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas”.

Procedimentos:

  • Imediatamente após a receção e análise da queixa, o CD contactou quer os queixosos quer os visados.
  • Assim, foi perguntado aos queixosos (25/8/2021) como fundamentavam a alegação de que se trata de uma queixa anónima e que exemplos podiam dar relativamente a uma afirmação por eles feita, segundo a qual “a generalidade da comunicação social replicou a primeira notícia, mas absteve-se de lançar os nomes de quem quer que fosse, pois bem sabia que tal divulgação, não só ofende o bom nome das pessoas no momento da publicação da notícia, como também mancha de forma permanente e irremediável tais nomes” (16/8/2021).
  • Os queixosos responderam oportunamente, explicando que “no dia 26 de maio de 2021, dois dias antes da publicação da notícia, os subscritores da queixa foram contactados telefonicamente pelos jornalistas do jornal em causa, tendo sido informados que a denúncia em causa era anónima”. Acrescentaram que “em momento posterior à publicação da notícia, a ADoP apresentou junto do Ministério Público uma queixa-crime contra desconhecidos por motivo de denúncia caluniosa, conquanto se o indivíduo que apresentou a denúncia falsa se tivesse identificado, a denúncia apresentada pela ADoP seria contra esse indivíduo”. Relativamente à lista de órgãos de comunicação social que publicaram a notícia, mas que se abstiveram de pronunciar o nome dos dirigentes da ADoP, foram enviadas ao CD 11 ligações, acrescidos de três casos de “órgãos de comunicação social online que, ao replicarem a notícia do jornal em causa, noticiaram o nome dos dirigentes da ADoP”.
  • No dia 17/8/2021 o CD enviou um conjunto de questões ao cuidado da Direção do Novo Semanário. Pretendia o CD confirmar se o jornal tinha conhecimento de que se tratava de uma queixa anónima e, em caso positivo, por que foi omitida do público essa informação? Por outro lado, pretendia o CD saber se a questão ser ou não ser uma denúncia anónima influenciou a decisão do jornal de identificar os visados e que fatores ponderaram nessa identificação? A última questão visava perceber a aparente contradição e falta de rigor alegadas pelos queixosos relativamente à segunda notícia (em que momento a AMA e o jornal souberam do arquivamento).
  • A 2/9/21 o diretor do Novo Semanário solicitou cópia integral da queixa, nos termos do n.º 3 do art.º 4.º do Regulamento do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, que foi facultada no dia seguinte.
  • A 3/9/21 as respostas foram enviadas pelo diretor do Novo Semanário, Octávio Lousada Oliveira. Relativamente ao conhecimento da denúncia ser ou não anónima, diz o diretor do jornal que “estamos a falar de questões abrangidas pelo sigilo profissional dos jornalistas, às quais, obviamente, não podemos responder” e que a decisão de identificar os alvos da queixa “foi uma decisão editorial que nada teve a ver com a alegada existência de uma ‘denúncia anónima’”, mas sim porque “os visados desempenham cargos públicos e estão, por isso, sob evidente escrutínio. Perante uma investigação judicial em curso, com suspeitas graves de corrupção desportiva, e perante documentos e abundantes contraditórios, temos o dever de informar factos de manifesto interesse público.” Relativamente à segunda notícia, Octávio Lousada Oliveira esclarece que “uma das regras do jornalismo é o contraditório e o cruzamento das fontes para apuramento dos factos, algo que foi cumprido escrupulosamente” pelos jornalistas, “como se pode comprovar pela leitura dos textos, na íntegra, das edições em papel.” O diretor do Novo Semanário acrescenta: “ainda assim, trata-se de questões abrangidas pelo sigilo profissional dos jornalistas às quais, obviamente, não poderemos responder. Acrescentamos apenas que todos os visados foram contactados, mais do que uma vez, pelos nossos jornalistas, confrontados até com respostas de agências internacionais que diziam o contrário do que os dirigentes da ADoP nos tinham dito inicialmente, e optaram por não responder nem apresentar documentos de contraditório.”
  • Uma resposta do diretor do Novo Semanário em concreto (“Estamos a falar de questões abrangidas pelo sigilo profissional dos jornalistas, às quais, obviamente, não podemos responder”)suscitou uma dúvida ao CD: se ​a​ informação foi veiculada por uma​ fonte ​do jornal ​que ​o Novo Semanário protegeu com o anonimato ​coberto pelo sigilo profissional ​(e evidentemente que o CD apenas queria confirmar se era este o caso e não estava a perguntar quem era a fonte) ou se a informação se baseou apenas na queixa anónima​ feita ao Ministério Público​, pelo que a pergunta foi enviada ao diretor do Novo Semanário a 8/9. No dia seguinte, Octávio Lousada Ribeiro reafirmou: “Face à dúvida suscitada pelo Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, reiteramos que se trata de uma informação abrangida pelo sigilo profissional de jornalista, razão pela qual não poderemos responder ao vosso pedido de esclarecimento”.

Análise:

  • Relativamente à questão da identificação dos queixosos, é relevante e mesmo determinante tratar-se ou não de uma queixa anónima, neste caso apresentada no Ministério Público. Infelizmente não nos é possível confirmar em definitivo essa alegação. O diretor do Novo Semanário entende que, esclarecer esse ponto, é uma questão de sigilo profissional, alegação que o CD tem, sem outros elementos, dificuldades em compreender, uma vez que em lado nenhum das duas notícias se refere a existência de uma fonte confidencial dos jornalistas.
  • Uma coisa é uma fonte a que os jornalistas entendem conceder o anonimato, outra é uma queixa apresentada às autoridades de investigação a coberto do anonimato – que os jornalistas não conhecem nem podem questionar.  Por isso, não havendo uma norma escrita, é prática corrente no jornalismo, por uma questão de ética e de proteção do bom nome, não se proceder a publicações de nomes de pessoas em determinadas situações (tal como a situação em causa). Esse cuidado é justificado pelo facto de qualquer pessoa poder fazer chegar ao Ministério Público uma queixa anónima, seja por motivos válidos (proteção da fonte, por exemplo) seja por um conjunto de outros motivos. O facto de diversas notícias terem sido feitas a partir da notícia original do Novo Semanário, citando essa fonte, mas não identificando as pessoas em causa, mostra que esse é um princípio presente na generalidade das redações portuguesas. Este argumento em concreto parece ainda mais relevante porque, como foi referido anteriormente, na notícia do Novo Semanário nunca é referido que se trata de uma denúncia anónima.
  • Na justificação apresentada, o diretor do jornal invoca o sigilo profissional para não responder ao CD se sabia ou não que a denúncia era anónima. Ora, o CD não pediu a divulgação da identidade de nenhuma fonte, mas apenas perguntou se o diretor tinha conhecimento de que a queixa era anónima e por que razão essa informação não foi disponibilizada ao leitor.
  • Na parte factual, a notícia em causa é construída exclusivamente a partir da denúncia.
  • A segunda notícia tem como título “Agência Mundial Antidoping só soube esta semana do arquivamento do caso Pote”, sendo referido que “a Lei Antidopagem no Desporto dita que as decisões dos processos disciplinares devem ser comunicadas à AMA. Segundo a lei, as decisões finais dos procedimentos disciplinares proferidos pelo CDA [Colégio Disciplinar Antidopagem], são impugnáveis para o Tribunal Arbitral do Desporto, pela ADoP, pelo próprio atleta, pela FIFA e pela AMA. Esta impugnação deve ser efetuada no prazo de dez dias úteis. Neste caso, e atendendo às respostas da Agência Mundial Antidoping, o arquivamento não terá sido imediatamente comunicado à AMA, mas apenas depois das suspeitas de corrupção avançadas pelo Novo Semanário.” Os queixosos afirmam ao CD que se trata de uma afirmação falsa, apresentando datas, factos e comprovativos que contrariam essa alegação. Mais: “salienta-se que no dia 4 de junho de 2021, data da publicação da notícia os jornalistas bem sabiam que a ADoP já tinha comunicado o processo à AMA, pois no dia 27 de maio de 2021 a ADoP respondeu a questões colocadas pela jornalista Cátia Costa, informando, de forma esclarecida. “Note-se que este caso foi oportuna e devidamente comunicado e justificado à FPF, à UEFA, à FIFA e à Agência Mundial Antidopagem (AMA/WADA).” Uma cópia do e-mail trocado com a jornalista foi enviada ao CD.
  • Neste aspeto, o diretor do Novo Semanário centra a sua resposta na questão do contraditório, que não está nem pode estar em causa. A alegação dos queixosos não tem a ver, contudo, com a falta de contraditório, mas com o facto de uma informação que consideram relevante ter sido omitida na segunda peça. 

 

Deliberação:

  • O Código Deontológico estabelece, no artigo 7º, que “o jornalista deve usar como critério fundamental a identificação das fontes”, sendo certo que, simultaneamente, protege as fontes confidenciais, por motivos de interesse público da informação veiculada. Mas fontes confidenciais (cuja identidade o jornalista conhece, mas não revela) não são queixas anónimas (cuja identidade o jornalista desconhece).
  • O CD nunca pretendeu que o Novo Semanário revelasse as suas fontes de informação relativamente às informações divulgadas. Lamenta, por isso, que a direção do Novo Semanário se tivesse escudado no sigilo profissional para se escusar a esclarecer se a informação divulgada se baseia apenas na queixa anónima apresentada ao Ministério Público, ou se se trata de uma informação baseada em fontes próprias a quem decidiu proteger com o anonimato.
  • O CD considera-se, deste modo, impedido de realizar um esclarecimento cabal sobre este ponto. Ainda assim, sublinha que a simples existência de queixas anónimas no Ministério Público, sem que se conheçam razões fundadas para a investigação policial e sem a correspondente investigação jornalística, não deve ser objeto de notícia. Nestas circunstâncias o CD muito menos encontra justificação para a identificação do nome dos visados pelo denunciante anónimo, até porque, no limite, a notícia podia ter sido publicada sem a identificação do nome dos dirigentes da ADoP. Sempre que não respeitem este princípio, os jornalistas e os media correm o risco de serem manipulados por terceiros, tornando-se em meros veículos públicos de denúncias, sem provas. Embora o Código Deontológico dos jornalistas portugueses nada afirme a este respeito, a Carta Ética Mundial para Jornalistas, da Federação Internacional de Jornalistas, afirma, no ponto 3, que o/a jornalista “apenas informará sobre os factos que ele/ela conheça a sua origem (…)”, nomeadamente através do conhecimento das fontes de informação. Este procedimento permite, entre outras coisas, ponderar a idoneidade das fontes de informação e avaliar da fundamentação das suas alegações para posterior investigação jornalística. Nestas circunstâncias, os jornalistas e os media têm o direito de proteger as suas fontes, tornando-se, no entanto, nos responsáveis pelas informações divulgadas.
  • Nestas circunstâncias, considera também o CD que, enquanto não houver uma eventual decisão judicial relativa a este caso, não há forma de saber se estamos perante uma “acusação sem provas”, que o Código Deontológico considera, no artigo 2º, como “graves faltas profissionais”.
  • Ainda assim, não se compreende como é que os jornalistas do Novo Semanário sabiam desde 27/5/21 que o caso foi comunicado às diversas instâncias nacionais e internacionais e não o referem na segunda notícia. Com efeito, é referida uma troca de emails referente ao dia 31/5/2021, mas em que a resposta da ADoP, enviada dias antes, não é citada.
  • Não se trata, neste contexto, de saber quem tem razão (se os elementos da ADoP se os jornalistas do Novo Semanário, que investigaram os factos): o que o CD tem dificuldades em compreender, perante os factos disponíveis, até porque esse é precisamente o título da segunda peça, é a omissão dos factos relatados no email de 27/5.
  • O diretor do Novo Semanário afirma que “todos os visados foram contactados, mais do que uma vez, pelos nossos jornalistas, confrontados até com respostas de agências internacionais que diziam o contrário do que os dirigentes da ADoP nos tinham dito inicialmente, e optaram por não responder nem apresentar documentos de contraditório”. Porém, isso não explica a omissão referida no ponto anterior.
  • O Estatuto Editorial do Novo Semanário estabelece que este meio “é um firme opositor da censura, do sensacionalismo e do clickbait, assim como do aproveitamento das vulnerabilidades dos seus interlocutores e ainda da exploração das indignidades da vida privada. Encara-os como inaceitáveis”, pelo que o CD exorta os seus jornalistas a cumpri-lo sem reservas.

Lisboa, 14 de setembro de 2021

 

Pelo Conselho Deontológico

do Sindicato dos Jornalistas

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