Públicos e televisão em debate na Arrábida

“Públicos, televisão” foi tema de um Curso da Arrábida entre 27 e 31 de Agosto de 2001, com coordenação de José Carlos Abrantes. Houve propostas para separar os conceitos de audiência e de públicos de televisão, analisaram-se conceitos utilizados para falar de televisão e discutiram-se estudos que ajudam a compreender os conteúdos televisivos. Um trabalho de Felisbela Lopes.

Definir o que é um «público», pondo à prova essa definição na análise de casos, foi a intenção de Daniel Dayan, professor de Sociologia dos Media no Institut d’ Études Politiques de Paris, e de Jean-Pierre Esquenazi, director do departamento de Comunicação da Université Lyon 3. A resposta à pergunta sobre se poderá haver um público sem que haja troca e portanto fala, foi negativa. Segundo Daniel Dayan, não há públicos invisíveis. Eles caracterizam-se, antes, segundo a sua perspectiva, por serem uma entidade estável, por terem a capacidade de desempenho perante outros públicos, por serem pessoas que se comprometem, tomam posição em defesa de valores e que traduzem os seus gostos em pedidos e em exigências. Nestas circunstâncias, o autor concluiu a sua tentativa de elucidação de um público da televisão pela admissão de um aparente revés. A televisão não terá, portanto, aquilo a que se possa chamar um “público” a não ser, talvez, um “público imperfeito”, um “quase público”.

Referindo-se à mesma problemática, mas com uma proposta lexical diferente, Jean-Pierre Esquenazi falou de “público” e de “não público”. Para perceber estes conceitos, é necessário perceber o processo de aproximação às mensagens televisivas em cuja base Esquenazi colocou aquilo a que chamou a “apreensão” que consiste em integrar a proposta do programa na situação específica do indivíduo. Estamos aqui num acto que se generaliza a todos aqueles que vêem televisão. O segundo acto – “interpretação” – já não seria extensível a todos. Ser capaz de enunciar o interpretante escolhido, encontrando argumentos legitimadores para essa escolha e fazer tudo isto no espaço público circunscrever-se-ia apenas a alguns. Mas é precisamente isto que, na sua opinião, distingue o “público” do “não público”.

Jean Pierre Esquenazi reconheceu que actualmente o “não público” constitui a identidade dominante dos telespectadores, pessoas que criam aquilo a que chamou “uma circulação intelectual entre o mundo representado (fictício ou real) do discurso e o seu mundo vivido”. Tudo isto não significa que o “não público” mereça uma desvalorização. Pelo contrário. Esquenazi defendeu que, para compreender a recepção televisiva, há que analisar cuidadosamente a formação dos “não públicos”, de todos aqueles que se apropriam das emissões e que não têm a oportunidade de se manifestarem explicitamente no espaço público.

UMA NOVA LUZ SOBRE CONCEITOS

Dominique Mehl, Todd Gitlin, Eduardo Cintra Torres e Geneviève Guicheney vieram propor um novo patamar no entendimento de conceitos amplamente utilizados, quando se fala de televisão. Intimidade, espaço público, audiência e telespectadores mereceram da parte destes intervenientes especial atenção.

Dominique Mehl, professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, defendeu a “intimidade” como uma ideia movediça cujas fronteiras seriam traçadas por cada um. Aquilo que encara como “espaço público” também se afasta das propostas de Habermas, sendo antes estruturado a partir da experiência e das emoções (ver entrevista feita a esta investigadora nesta edição da JJ). Esta nova configuração poderia chamar-se “quase espaço público” ou “não espaço público”. Dominique Melh arriscou a designação “espaço privado público”, mas saiu dos Cursos da Arrábida com duas propostas, a de Daniel Dayan que sugeriu “esfera” e a de Serge Tisseron que preferia o nome “território”. De Portugal levou estas sugestões e o alerta de Dayan que serve de sinal amarelo para todos: “o êxito do vocabulário é essencial”.

As intervenções de Todd Gitlin, professor de Cultura, Jornalismo e Sociologia na New York University, e de Eduardo Cintra Torres, crítico de televisão do jornal “Público”, introduziram uma proposta de interpretação do significado e das implicações das “audiências” como fenómeno cultural e civilizacional.

Gitlin afirmou que, desde o princípio do século XX, audiência significa “audiência de massa” e lembrou que este conceito é alvo de uma simplificação, expressa na forma como é frequentemente avaliada: a partir de indicadores e abordagens estritamente quantitativas. Na sua opinião, os membros da audiência tendem a ser analisados apenas enquanto consumidores dos media, desvalorizando-se outras facetas da sua vida pessoal e social. Neste plano, Gitlin afirmou a necessidade de uma perspectiva abrangente que contemple a totalidade da experiência dos membros de uma audiência e não apenas os aspectos que respeitam directamente ao consumo de media.

Eduardo Cintra Torres, por seu lado, apresentou uma leitura das “audiências” segundo os conceitos de “multidão” de Gustave le Bon e de “multidão virtual” de Gabriel Tarde. Do primeiro retomou a ideia de que a “multidão é um ser provisório” que necessita de um condutor, função que, na altura, se reconhecia poder ser desempenhada pela imprensa. Do segundo aproveitou a noção de “multidão virtual” que foi equiparada à de “públicos” para reafirmar que “a influência dos espíritos uns sobre os outros se tornou uma acção à distância” que se torna cada vez maior devido à acção dos media.

De acordo com Cintra Torres, essas multidões virtuais fazem hoje o seu retorno à sociedade incarnadas na audiência televisiva, mas reaparecem de forma transfigurada, integradas no sistema, encontrando na televisão um meio, entre muitos outros, que lhes serve de condutor. Há, por isso, que lhes prestar toda a atenção, inscrevendo-as na trama sociológica.

Geneviéve Guicheney, através da sua experiência como provedora de programas da France Télévision, veio trazer uma outra proposta de entendimento dos “telespectadores”, longe do paradigma económico que encara aqueles que vêem televisão como números. Guicheney – primeira provedora dos canais públicos franceses, desenvolvendo aí esse trabalho há três anos – sublinhou que, apesar de todos os telespectadores estabelecerem com um programa uma relação, esta nem sempre é satisfatória. Já isto bastaria para justificar o seu trabalho, feito o ano passado a partir de algumas das 22 mil mensagens electrónicas e das 900 cartas que recebeu dos telespectadores da TV pública francesa que encontraram nestes meios a possibilidade de enviarem ora os seus agradecimentos, ora as suas queixas.

CRÍTICAS AO PAP

O cargo de provedora de televisão, inexistente em Portugal, recolheria certamente o aplauso de Eduardo Marçal Grilo, ex-ministro da Educação, que deixou na Arrábida uma série de críticas à RTP que, na sua opinião, não presta o serviço público para o qual está vocacionada. Em jeito de pistas, sugeriu-se ao canal generalista público que conceba uma programação rigorosa, moderna, tranquila, séria e culturalmente evoluída, capaz de manter um equilíbrio entre o “atraente sem ser sensacionalista e o cultural sem ser enfadonho”. As suas críticas estenderam-se também aos canais privados que, juntamente com a RTP-1, se caracterizam, na opinião de Marçal Grilo, por uma má qualidade de programação que se espelha, por exemplo, numa informação espectacularizada que se esquece da substância para se deter em pormenores supérfluos, em talk-shows narcísicos e circulares (“hoje vens ao meu programa amanhã vou eu ao teu”), em transmissões de futebol comandadas por pseudo-intelecutais da bola ou em programas que cultivam o crime, a violência e o voyeurismo.

A dificuldade em identificar os gostos da classe média urbana, onde se situa a maioria dos telespectadores, poderá ser uma das causas da deriva da programação televisiva e da respectiva falta de originalidade. Pelo menos é esta a perspectiva da Carlos Fogaça, das Produções Fictícias.

Como se situam as estações privadas e públicas face a uma classe cujo denominador comum é a instabilidade, a insatisfação e o vazio cultural? No que diz respeito aos canais comerciais, procura-se, segundo Fogaça, reproduzir formatos de sucesso testado. Os canais públicos, por seu lado, vêem-se obrigados a carregar consigo o “ónus da inovação” e a aguentar aquilo que Fogaça disse ser o “peso de quem aparentemente falha de forma sistemática”, apesar desses insucessos terem em embrião equações que, num futuro próximo, podem vir a revelar-se grandes trunfos, que, no caso português, têm sido mais visíveis nas estações privadas. O exemplo apontado foi o das telenovelas do grupo NBP.

NOTAS

– Os Cursos da Arrábida, que anualmente abordam vários temas, são organizados pela Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimntos Portugueses e pela Fundação Oriente, contando com o patrocínio da École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris e do European University Institute – Florence, e o apoio da Embaixada de França. O director dos cursos é Eugénio Lisboa.

– O texto de Felisbela Lopes foi realizado a partir das sínteses feitas por ela própria e por Tito Cunha, José Barreiros, Isabel Ventura e António José Silva.

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