Privatizações na RDP e na RTP sem justificação

As privatizações na RTP e na RDP são contestadas pelo Sindicato dos Jornalistas (SJ). Em comunicado, a direcção do SJ «deixa claro que não vê nenhuma justificação de ordem técnica ou económica para a redução de canais públicos, seja na Rádio seja na Televisão» e lamenta a «pobreza dos conceitos» e as «contradições entre as estratégias esboçadas» no Programa do Governo, que foi apresentado esta segunda-feira.

A alienação de canais da RTP e da RDP é fortemente criticado pelo SJ, em comunicado onde sustenta que os problemas de gestão e de orientação existentes nomeadamente na primeira daquelas empresas não justificam aquela medida. O SJ afirma estar à disposição dos grupos parlamentares e do Governo para discutir esta matéria, com base no documento que esteve em discussão no Outono de 2001.

Crítica ao Programa do Governo

SJ CONTRA PRIVATIZAÇÕES NA RTP E NA RDP

O Sindicato dos Jornalistas lastima a ligeireza do programa do governo em matéria de comunicação social, quer pela pobreza dos conceitos, quer pela contradição entre as estratégias esboçadas e as medidas precipitadas que adianta para o Serviço Público de Televisão (SPT). Chega a ser alarmante a precipitação do governo na questão da RTP. Sobre a RDP o Governo não sabe o que quer, apenas diz que vai mudar. E sobre a Imprensa esqueceu-se que ela existe. Já no capítulo da “sociedade de informação”, as perspectivas governamentais espraiam-se num rol infantilista, que vai desde a estratégia deslumbrada de “reinventar a organização do Estado” até ao “lançamento de um número de telefone de informações da Administração Pública”, sem esquecer a urgência de o ratio de computadores em Portugal ultrapassar a média da Comunidade Europeia (!)

Para além de afirmações genéricas e elementares sobre os objectivos da comunicação social como factor de modernização da sociedade (mas tendo o cuidado de não empregar nunca a palavra “democracia”) o governo começa (e bem) por apontar a necessidade de clarificar o quadro e o perfil das empresas sob responsabilidade estatal. Até se podia concordar com esta prioridade. Só que para lá chegar o governo propõe-se fazer leis que definam o conceito de Serviço Público, prometendo vagamente uma forma de financiamento transparente sem explicitar se conta com a publicidade ou se recorre ao Orçamento e apontando-lhe como objectivo “a defesa dos interesses dos portugueses” (é tudo e não é nada) e o melhor funcionamento do mercado (mas não se diz como).

O documento critica que até agora o conceito e a prática do SPT tenham sido polémicos. É verdade. Mas, em vez de procurar consensos alargados, o que faz? Afunila a questão e apressa-se a definir, unilateralmente e sem debate democrático, aquilo que entende por prioridades do Serviço Público. E por esta ordem, que não nos parece inocente: 1) afirmar a presença cultural portuguesa no mundo, particularmente nos países lusófonos; 2) acompanhar as comunidades portuguesas da emigração; 3)promover a lusofonia. Só em quarto e último lugar refere atabalhoadamente a finalidade essencial do Serviço Público de Televisão, ou seja, a coesão social e o pluralismo cultural. E mesmo assim, tem medo das palavras: em vez de “social”, foge patrioticamente para a “coesão nacional”; e, em vez de pluralismo cultural, fala de “defesa das minorias no quadro de “uma comunicação global com parâmetros éticos e valores socialmente inquestionáveis”(!)

Esquecendo-se de haver apontado inicialmente a necessidade metodológica de clarificar o conceito de serviço público, bem como a situação e o perfil do sector, o documento apressa-se a decidir sobre o futuro imediato da RTP e a RDP, sem conhecer os dossiês. Toda a gente sabe que é preciso mudar radicalmente a RTP e a sua gestão megalómana, o descalabro económico e a falta de projecto. Só que o programa do Governo não adianta nenhuma ideia responsável. O que o Governo promete é deitar fora a criança com a água do banho. Pelo nosso lado, o Sindicato dos Jornalistas tem contestado certas práticas e vícios da RTP, em nome da dignificação do Serviço Público, da sua credibilidade e da sua influência na prática da cidadania. Mas não confundimos o Serviço Público com as fragilidades da empresa e os erros da presente gestão (como o Governo faz) da mesma maneira que lutamos pela democracia mas somos capazes de criticar os erros de governos democráticos.

Ainda recentemente o SJ promoveu a discussão do Serviço Público, apontando as bases para um debate sobre a sua definição político-cultural, sobre o seu relacionamento com as empresas independentes de produção externa e com as televisões comerciais, sobre a sua natureza e âmbito, sobre a forma de financiamento, sobre a adequada estruturação da empresa, sobre o modelo de gestão e de regulação e, ainda, sobre as responsabilidades que cabem aos jornalistas, autores e outros criativos. O documento guarda toda a actualidade, como se viu pelas declarações recentes de muitas forças políticas e até pelo aproveitamento indecente que alguns empresários privados dele fizeram.

Perante a circunstância de uma nova Assembleia da República, o SJ coloca-se à disposição dos grupos parlamentares e do Governo para a discussão do documento de Outubro passado. Mas, para que conste, aqui fica um resumo adaptado ao contexto actual:

1. O serviço público de Televisão é necessário, porque a defesa da identidade nacional, a coesão social e a qualidade da cidadania são obrigações do Estado e não têm que ser feitas à custa das empresas privadas. O âmbito do seu conceito e as formas gerais do seu exercício devem decorrer de amplo debate democrático, a culminar em votação parlamentar.

2. O serviço público da República tem de ser universal e gratuito (apoiado num canal generalista dirigido a todos os cidadãos e acessível em todo o território nacional) e tem de responder às necessidades culturais de grupos mais exigentes (através de um canal tematizado e diversificado). Nenhum dos dois canais é dispensável.

3. Os canais regionais dos Açores e da Madeira já não têm audiência regional que justifique emissões autónomas, nem suficiência económica, nem recursos humanos – devendo dar lugar a centros de produção regional para preencher pequenos espaços de emissão local ( janelas de canais nacionais ) e também para integrar programas de promoção das ilhas nas emissões nacionais.

4. A RTPi deve ser refundada, por forma a garantir a sua identidade de programação, para animar a interactividade entre o berço e a diáspora da nossa emigração, com base em produção própria e com recurso a programas seleccionados de outras estações nacionais, inclusive das privadas. A RTP/África deveria sair do âmbito do serviço público português, fazendo mais sentido a criação de um canal de cooperação lusófona, incluindo o Brasil (sem o qual não haverá lusofonia).

5. O financiamento deste sistema não pode basear-se na publicidade mas no Orçamento do Estado, por forma a criar condições para uma concorrência assente em critérios de qualidade e de diversidade dos programas e não no mimetismo e na luta pelas audiências comerciais. A publicidade seria reservada aos canais comerciais, com a contrapartida de um imposto especial, mas esta alteração terá que fazer-se de forma gradual, à medida que o Estado vá aumentando o financiamento público.

6. O modelo de gestão do serviço público democrático tem de ser desgovernamentalizado, dependendo da Assembleia da República a eleição e a nomeação e exoneração do Presidente da RTP, bem como o exercício de regulação e controlo da empresa, de forma directa ou indirecta.

7. Não pode haver serviço público sem o envolvimento dos profissionais, sobretudo dos jornalistas e outros criativos. É um problema de ordem cultural e política que não é fácil resolver. Tão-pouco haverá serviço público, que não seja baseado em trabalho democrático de equipa, sendo certo que não há equipas que resistam a discrepâncias salariais desmedidas. Esta evidência levanta a questão dos critérios de vencimento de gestores, directores e vedetas do serviço público, que desequilibram a empresa, ofendem a generalidade dos outros profissionais e geram efeitos de ostentação imoral que contribuem para a descredibilização da empresa. Por outro lado, a participação dos profissionais implica a valorização dos seus órgãos representativos, inclusive ao nível da gestão, como é de lei, bastando para tal seguir a prática de gestão moderna de muitas empresas jornalísticas europeias.

8. O SJ aplica as mesmos princípios à RDP, com as adaptações óbvias. Mas estranha a anunciada preocupação do Governo pela “reorganização da estrutura da empresa”, já que não se tem conhecimento de quaisquer disfunções na actividade da empresa e, pelo contrário, são públicas as referências positivas do respectivo Conselho de Opinião acerca do desempenho da gestão e da qualidade do serviço público.

9. Finalmente o SJ deixa claro que não vê nenhuma justificação de ordem técnica ou económica para a redução de canais públicos, seja na Rádio seja na Televisão. Se se procura diminuir a despesa de exploração, é preciso quantificar essa poupança, que não será determinante. Por outro lado, não se prevê que a alienação dos referidos canais produza receitas significativas que permitam cobrir passivos noutros flancos das empresas, já que o preço da venda destas frequências hertzianas, outrora escassas e protegidas, está hoje pulverizado pela proliferação de canais na rede de cabo e na anunciada plataforma digital. Além disso, o Governo terá de explicar se pretende abrir concurso público para outorgar as frequências, as licenças ou a estrutura empresarial dos canais ou se apenas vai ceder a pressões de operadores privados. De qualquer forma, também terá de explicar politicamente qual a vantagem de privatizar canais públicos que depois facilmente poderão ser absorvidos por conglomerados internacionais, com prejuízo para a autonomia nacional. À falta de respostas técnicas, o SJ seria obrigado a admitir que o Governo só possa ter razões de natureza ideológica, seguramente discutíveis, para a privatização daqueles canais públicos, com prejuízo da autonomia nacional.

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