Palavras de Baptista-Bastos

Orador convidado pela Casa da Imprensa para a cerimónia evocativa de Artur Portela no centenário do seu nascimento, o jornalista e escritor Baptista-Bastos leu, a propósito, um texto a que deu o título «Memória e Louvação». Ao traçar o perfil do homenageado, confessou que aos 19 anos ele era o epítome do que queria ser: um jornalista rodeado de respeito e admiração.

Da varanda onde observava a rua, via-o descer a calçada e seguia-lhe o passo lento, mas firme. Eu era um rapaz esgalgado e um pouco espavorido, ainda não punido pelos sobressaltos do desencanto. Ele, um senhor de muito mundo, que conhecera os imprevisíveis argumentos da História, que narrara, em páginas admiráveis, as trémulas vertigens do comportamento dos homens, e, sereno e grave, nunca deixara de confiar na proeminência da dignidade e da honra sobre as imposições do infortúnio e as arbitrariedades dos vencedores do momento. O homem que passava na rua, e eu seguia com o olhar, nunca ocultara o seu amor à liberdade, e nunca dissimulara que sonhava Portugal com uma integridade minuciosa.

«Boa noite, senhor Portela!»

Saudava-o na varanda, e era uma sudação ínfima e infinita, feita de emoção e de júbilio. Ele parava um pouco, erguia os olhos, levava a mão ao chapéu, sorria um sorriso efusivo, lá ia ele. Eu andava a gatinhar na talagarça da notícia, ele era um jornalista célebre, e cunhara um estilo pessoalíssimo em textos que pertencem à selecta mais exigente do nosso ofício. Eu começara a aprender que não há notícias sem pessoas lá dentro, e que um jornal mais não é do que o pulsar de uma pobre humanidade impressa em corpo 8. Ele fazia parte dessa estirpe de jornalistas para a qual a profissão, sendo uma incómoda magia, era, sobretudo, um testemunho qualificado do labirinto onde se dissimula a alma humana. Um jornalista de grande formato moral, que enfrentara os caprichos do tempo e as arbitrariedades dos mandantes com serena e altiva dignidade. Numa época inclemente e sem esperança, num Portugal cujo governo não ocultava simpatias pelo nazi-fascismo, ele assumira um cargo que muitos haviam recusado: dirigira, durante a Segunda Grande Guerra, a revista «Mundo Gráfico», a única na Europa, com excepção da Inglaterra, favorável à causa dos Aliados. Uma publicação antagonista do esquecimento e oposta à indiferença, objectante daqueles que julgavam tudo perdido. O honrado jornalista português escrevera: «Enquanto houver um homem livre, a liberdade será defendida.» Não era uma bravata: era uma espécie de justificação das ilimitadas dimensões da esperança, e uma insurreição contra as improváveis leis do acaso. O «Mundo Gráfico» obedecia aos imperativos da consciência democrática, num país onde o breviário oficial, com o incenso do hissope, atirava para a masmorra aqueles dos quais se lhe opunham.

«Boa noite, senhor Portela!»

Dizia-lhe, da varanda de «O Século», e queria dizer-lhe, do alto dos meus 19 anos, que ele era o epítome do que eu queria ser. Um jornalista rodeado de respeito e de admiração, que jogara no regueirão da Imprensa a parte mais estelar de um talento formidável. Lia-o, no «Diário de Lisboa», e sabiam que eram dele, e só dele poderiam ser, aqueles textos não assinados, porque ele fazia um jornalismo de autor, reabilitando a grande tradição do século XIX, que associara à beleza do estilo a força veemente da demonstração.

Da varanda de «O Século» eu gostava de ver aquele homem aparentemente fatigado de trabalho, aparentemente absorto e melancólico, mas em cuja prosa ainda luzia a pepita que ilumina a rotina dos dias e a monotonia do hábito. Com ele conversei, depois, várias vezes. A afabilidade do homem correspondia à ideia que eu criara do jornalista. Escutava-o, contando histórias de Espanha e de Itália, raízes da sua relação com o passado; recordando episódios dramáticos ou hilariantes protagonizados por camaradas de ofício; discreteando sobre a falsa clareza da arte, nos mistérios subtis que ela nos propõe.

Em 1958, fui à Bélgica, para dizer, aos leitores de «O Século», o que se passava na Exposição Universal de Bruxelas. Artur Portela viajou no mesmo avião, enviado especial do «Diário de Lisboa». Uma viagem para sempre e um convívio inesquecível. Um clarão resplandecente como uma auréola iluminava a figura daquele homem sensível e jovial, que dava o braço ao ouvinte regozijado que eu era. Passeámos pelas ruas velhas da cidade, e ele apontava a beleza dos cairéis nos edifícios vetustos, indicava a harmonia dos jardins, a solenidade do Museu das Belas Artes, o encanto das mulheres. Bebíamos café numa bela esplanada da Place Rogier e percorríamos os bouquinistes; fomos ver uma exposição de Rembrandt; e vagueámos pelos pequenos bosques enevoados de Burges-la-Morte.

No regresso, escrevi umas reportagens desalinhadas e incompetentes, e ele um texto magnífico, revisto de minúcias informativas, anotado de pormenores que me haviam escapado, prodígio de factos. Alvoroçado de soberba, eu assinara as tristes prosas. Ele, com modéstia e singileza, apenas apusera, no final do granel, as suas iniciais. A regra de que a notícia é o pão nosso de cada dia, estava contida naquele artigo – exemplar como o seu autor. Também aprendi que o futuro do jornalista é o seu horizonte visual, e que a sua missão, soberana entre as demais, consiste em transformar o silêncio em voz, e em ressuscitar constantemente a ideia de que o jornal é um acto de infinita solidariedade.

Essa solidariedade levara-a ele aos territórios de outras actividades sociais: foi fundador do antigo Sindicato dos Profissionais da Imprensa, e interveio, activamente, na criação da carteira profissional. Não se julgue que isto resgata circunstâncias vulgares. Portela enfrentava os poderes constituídos e o patronato. Os jornalistas começavam a ter instrumentos e organizações que os defendiam. Já não eram corpos sem nome e sem rosto.

Impressionava verificar as multiplicações activas de Artur Portela: jornalista a tempo inteiro no «Diário de Lisboa», colaborador de revistas e jornais, escritor de livros marcantes, escrevedor de informações sobre os espectáculos dos Coliseu dos Recreios – uma espécie de sobressalente em numerário que lhe arranjara o seu amigo Ricardo Covões, a fim de que o grande jornalista, pobre de meios, pudesse arredondar a conta ao fim do mês.

Uma longevidade profissional que emocionava numa vida tão curta. Artur Portela morreu com, apenas, 58 anos, e levara quase quarenta de escrita sem rugas. O seu coração chorara as nossas lágrimas, exultara com as nossas alegrias, estremecera com as nossas dúvidas, inquietara-se com as nossas dores, ensombrara-se com as nossas desilusões, rira-se com as nossas graças. E não aguentara tamanha carga.

Em 1978, Boavida-Portugal entregou-me, nesta mesma sala, o Prémio Artur Portela, ganho com uma série de reportagens sobre a Checoslováquia, e publicadas no «Diário Popular». Eu ainda não começara a descer ao meu Salgueiro, Artur Portela já subira, havia muito, para o Olimpo. Encontrávamo-nos, porém, na emoção do instante, e naquilo que nos unira para sempre: o amor ao jornalismo e a constância de que nenhum de nós trocara de lealdades ou traíra o testemunho que outros estafetas haviam depositado nas nossas mãos.

Ele continuava a ser aquele homem que descia a calçada, em passo lento, porém firme. Eu já deixara de ser o rapaz esgalgado e espavorido, já fora sovado pelas injúrias da época, já me rendera à espada, mas nunca vendera a palavra, e continuava a mantê-lo na recordação afectuosa que o passado moldara e que o presente garantia.

Continuava a dizer: «Boa noite, senhor Portela» – e ele erguia os olhos, levava a mão ao chapéu e sorria um sorriso efusivo. Como se o tempo deixasse de ser tempo ou tivesse passado por nós sem em nós ter reparado. Como se fosse qualquer coisa de ontem, para ser qualquer coisa de sempre.

«Boa noite, senhor Portela!»

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