Palavras de Artur Portela (Filho)

A encerrar as intervenções da cerimónia comemorativa do centenário de Artur Portela, usou da palavra, em nome da família do homenageado, o seu filho detentor do mesmo nome e apelido, também como ele jornalista e escritor. Ao traçar o retrato moral e profissional do pai, realçou os valores que defendeu e cuja validade considerou uma exigência do futuro.

Minhas senhoras, meus senhores.

Meus amigos.

Falo, por amável convite da direcção da Casa da Imprensa, em nome da família de Artur Portela.

Desde logo, para, nesta condição, dar um contributo para a iniciativa que nos reúne aqui, permintindo-me destacar, no meu também devido agradecimento, o nome do Presidente desta Casa, o jornalista Fernando Pires.

Este acto tem decerto o significado que outros intervenientes já sublinharam e que naturalmente muito sensibilizaram, designadamente quem usa o nome que foi, e é, o do jornalista aqui evocado, e quem está na profissão que foi a sua.

Decerto já não há, já não é, já não pode ser, o jornalismo que foi, e os jornalistas que foram e como foram.

O que não é, porém, inteiramente, uma virtude.

Porque há valores que a nova economia da comunicação e o seu desdobramento que é informação, a nova ideologia tecnológica, as novas metodologias, a nova terminologia, não despromovem, não ultrapassam, não ocultam.

Que valores?

A generosidade da entrega, a generosidade de ser, a generosidade de fazer que o jornalismo — e não apenas só romanticamente — é. Artur Portela não se eximia, não se poupava, não se elidia, não se negociava. Não estava em trânsito. Não estava em leilão. Era só jornalista, e isso era então muito, e chegava profissionalmente para ser tudo.

O sentido de missão.

Artur Portela tinha do jornalismo uma alta e exigente noção. Alta no sentido de larga e complexa, exigente no sentido de não auto-complacente. No sentido da contribuição, de dever, de missão. Só estava bem quando social e culturalmente se entendia e praticava. O limite era um desafio, e a honra a resposta a esse desafio.

A solidariedade.

Artur Portela sempre se bateu, pelos valores democráticos, estruturantes, eles, do jornalismo, sendo o verdadeiro jornalismo estruturante, como se sabe, da democracia. Assim foi Artur Portela, desde a sua juventude republicana avançada, passando pelo afrontamento da ditadura salazarista e da sua arma brutal que foi a censura, e pela sua identificação nomeadamente com movimentos de candidaturas eleitorais opostas ao regime salazarista. Como a de Humberto Delgado, campanna em cujo demorado fragor viria a morrer. Não alcançando assim, também ele, um dos maiores desejos, aquele que ele inscreveu no rosto de um dos seus livros: «A minha maior ambição seria morrer como nasci: livre!»

Solidariedade.

Solidariedade que naturalmente se exprimiu na luta sindical e no projecto de solidariedade socioprofissional que foi a Casa da Imprensa.

Sem distinguir entre os jornalistas aqueles que ideologicamente sim e aqueles que ideologicamente não. E não apenas por automatismo corporativo, mas por largueza, por aristocracia da sensibilidade. Estranha e admirável solidariedade essa, que ainda testemunhei, ao mesmo tempo humanamente incondicional e ideologicamente condicional, que ligava por cima dos muros com que nos muravam, se não todos, muitos homens de uma e de outra banda. Artur Portela, o amigo de Abel Salazer, de Aquilino, de Joaquim de Carvalho, de Ferreira de Castro, de Miguéis, era o amigo de António Ferro. O António Ferro, companheiro da juventude essa também modernista e cosmopolita de Artur Portela, com Almada, Barradas, João Soares, e tantos outros. O António Ferro que Artur Portela foi encontrar a morrer, de exilada tristeza, cônsul da ingratidão de Salazar em Berna.

O humanismo.

Artur Portela lutou pelos valores sociais e políticos que identificam o humanismo. Numa perspectiva cívica e política, democrática representativa. Designadamente, na direcção da, por considerável tempo, única publicação que defendia a causa dos Aliados, num país onde o poder ideologicamente se filiava no fascismo. Humanismo também cultural.

Foi, como então também se era, também se podia ser, o jornalista literário, o jornalista-escritor, o cronista. Não apenas o repórter das greves académicas, das grandes operações cirúrgicas, da aventura dos contrabandistas, dos pescadores de atum, para ele, os homens da tourada do mar, dos vinhateiros do Douro, da vidas secretas e solitárias dos monges e dos faroleiros, do quotidiano dos presos nas penitenciárias, da vida nos submarinos, sempre socialmente empenhado, o correspondente de guerra, o entrevistador de Unamuno, de Paul Reynaud, de Stefan Zweig, de Giovanni Papini, de Churchill em 1939, nas vésperas do conflito mundial.

Mas também, porque era assim, porque podia ser assim, porque também isso era a generosidade, a polivalência, o risco de se ser, então, jornalista, o coordenador do suplemento «Vida Literária» do jornal onde trabalhou 30 anos, o «Diário de Lisboa», o cronista da vida artística, o crítico de teatro, o evocador de Garrett, de Camilo e de António Nobre. Não que a literatura fosse um refúgio, mas porque era uma afirmação de liberdade e tantas vezes a alegoria contra a ditadura. Cabe aqui lembrar, entre tantos outros, os seus livros de vibrante, entusiástica, comovida reportagem: «Batalha Humana», «Quando os Mortos Falam», «À Lareira de Portugal», «Os Monges Negros».

Este, num escorço, o homem e alguns dos seus valores.

Porque se esses valores, a generosidade, a missão, a solidariedade, o humanismo, foram para ele naturalmente vividos conforme a sua matriz afectiva, a sua formação cultural, a sua marca geracional, eles permanecem, hoje, exigentes.

Apenas lamentavelmente mais desertificados.

Quando, por exemplo, o jornalismo se mercantiliza, se vedetiza, se interdisciplina com ocupações eticamente contraditórias, o jornalista-empresário, o jornalista-marketing, o jornalista-merchandising, quando o jornalismo disputa à velha diplomacia o nome de Carreira, quando o jornalismo é «A Carreira», quando algum jornalismo é grande eleitor de cargos políticos e alguns cargos políticos são, mais ou menos objectivamente, grandes eleitores de cargos jornalísticos, quando o jornalismo toma, por oportunismo logístico, por visibilidade, por audiência, as rédeas de um poder que, de facto, não lhe pertence, investiga, processa, julga, condena e sumariamente executa, pergunta-se: que valores?

Quando, por exemplo, o jornalismo, designadamente o português, não explica, não contextualiza, não distingue, quando o jornalismo se deixa embarcar numa operação de psicoestratégia político-militar planetária, usando, acriticamente, automaticamente, os termos do que, começando por ser o terrorismo, de facto abdominável, já é o teguerrismo, também detestável, quando o jornalismo objectivamente toma o partido da dinâmica vendedora da própria guerra, da própria destruição, da própria escalada da irracionalidade, quando o jornalismo se faz video-clip do mata e do esfola global, pergunta-se: que valores?

Pelo que se poderá dizer que, sendo inegáveis os avanços, a preparação, a especialização, o acesso, o esboço da já interactividade, sendo evidentíssimas as vantagens sociais e democráticas, porventura mais potenciais do que reais, de tudo isso, algum jornalismo ainda não é, em aspectos cultural, técnica e eticamente cruciais, o que o jornalismo português já foi.

Foi capaz de ser em condições laborais, técnicas, políticas, tão mais precárias, tão mais difíceis, tão mais arriscadas.

Não que esse jornalismo que foi tenha sido apenas qualidade moral, cultural cívica, não que não tenha tido, também ele, as suas sombras, e não apenas a da institucionalizada noite política que sobre ele, e contra ele, se abateu, não que esse jornalismo não fosse o possível do impossível, voz do silêncio, gesto aprisionado, vazio de tesoura, corte cortado, movimento imobilizado, mas porque esse jornalismo, ainda assim vivo, irredutível, de pés fincados na sua profissão impossível, no espaço profissional que era o seu, porque esse jornalismo solidário, sindicalizado, com os olhos cheios de mundo, testemunhas em expectativa, queria ser, e creio que talvez merecesse ser, ele e o país, a sociedade para os quais trabalhava, véspera de um dia que não veio, de um futuro que este em tantos domínios decepciona, trai, dramaticamente não é.

Quando alguma coerência ideológica e tão outras, e em tantos aspectos melhores, condições exigiram o mínimo que não se cumpre.

Artur Portela, a oportunidade desta memória, julgo-me, permito-me julgar, será assim a da afirmação de que este homem, parte importante do que ele foi e com tantos camaradas de profissão compartilhou, parte importante do que ele representou, increvem-se, não no passado, mas na exigência moral, ética, cultural do futuro.

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