Otília Leitão: “Autonomização do princípio/dever da cláusula de consciência é de extrema relevância”

Mestre em Comunicação, Media e Justiça, doutoranda em Ciências da Comunicação e ex-membro do Conselho Deontológico do SJ, deixa o seu contributo acerca do assunto no contexto do referendo às alterações ao Código Deontológico.

A jornalista Otília Leitão é uma estudiosa da cláusula de consciência. Especialista em temas judiciais, licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, além de Mestre em Comunicação, Media e Justiça pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa e doutoranda em Ciências da Comunicação no ISCTE-UL, foi vice-presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas durante dois mandatos. Passou pelas agências ANOP, Notícias de Portugal e Lusa, sendo delegada em Cabo Verde e Moçambique, bem como colaboradora de Expresso, Sol, Semanário e Correio da Manhã. Correspondente d’A Semana (Cabo Verde) e O País (Angola), foi responsável por cursos de formação no CENJOR e na ETIC. No contexto do referendo às alterações ao Código Deontológico, o seu contributo acerca do princípio/dever da cláusula de consciência fica expresso em vários esclarecimentos.

Assim, Otília Leitão começa por explicar que “está a autonomizar-se um princípio/dever, que está no Código Deontológico no ponto 5, misturado com outros princípios e que, inapropriadamente, se diz vulgarmente cláusula de consciência. Esta última é uma norma que está na Lei de Imprensa, Estatuto do Jornalista e repercute-se no contrato de trabalho do jornalista”.

Ora, a autonomização “é de extrema relevância e confere-lhe a dignidade que merece. É um princípio/dever estruturante da profissão e transversal a todo o trabalho jornalístico. O jornalista deve recusar atos que violentem a sua livre consciência. Tem proteção constitucional e em fontes internacionais como a DUDH, DEDH, TEDH e outros textos europeus. Todos os códigos deontológicos falam da necessária ‘liberdade de consciência do jornalista’, a bem do pluralismo e da democracia”. Por outro lado, “definir este princípio/dever no Código Deontológico – ‘recusar atos que violentem a sua consciência’ – é pensar todos os dias, sempre que se elabora matéria noticiosa: devo ou não devo fazer determinado ato ou procedimento, pensando no interesse público e obedecendo aos grandes princípios éticos inerentes ao ser humano”.

A ex-dirigente do CDSJ refere que “o princípio/dever do Código Deontológico ‘o jornalista deve recusar actos que violentem a sua livre consciência’, tem escala global” e acrescenta: “Este princípio/dever tem como corolário as chamadas garantias de independência, plasmadas no artº 12 do Estatuto do Jornalista que são a ‘independência e cláusula de consciência’. Está constante do ponto 4, e com repercussão no artigo 38º do contrato coletivo de trabalho. É específica, sendo o jornalista a única profissão entre as demais que a possuem (médicos, enfermeiros, juízes e advogados) nestes moldes. É mais complexa porque a sua invocação exige a confirmação dos motivos pela autoridade reguladora, neste caso a ERC. É uma cláusula em que o jornalista que se sente ofendido nas suas convicções ideológicas, morais e dignidade, pode optar por auto-rescindir o vínculo laboral, sendo indemnizado com mês e meio por cada ano de trabalho (artº 12.EJ).”

Sobre a cláusula de consciência, Otília Leitão aponta: “A cláusula de consciência é uma norma legal. Existe nos países da União Europeia e países de sua influência como o Canadá ou outros na América Latina. O Brasil, por exemplo, adotou uma cláusula de consciência em 2007, a Argentina em 2012. Dada a precariedade no jornalismo em todo o mundo, ela é raramente utilizada, tendo em conta os universos de 20 mil jornalistas em Espanha ou 30 mil em França. Continua, no entanto, com a simbologia de resistência à homogeneização do pensamento.”

Recorrendo à sua experiência, a jornalista resume: “Do estudo que venho desenvolvendo sobre a temática, apercebo-me que a liberdade de consciência está no espírito de qualquer jornalista que se preze de o ser. Defendê-la em concreto é mais difícil dada a precariedade laboral existente e as imposições de quem detém a propriedade dos media. Quanto à cláusula de consciência propriamente dita, poucos conhecem verdadeiramente o seu alcance. Nos dias de hoje, em que a era digital mudou o jornalismo e o modo de o fazer, é um pouco estigmatizante invocá-la porque, se o jornalista optar por sair, tem dificuldade em encontrar emprego. Se optar por ficar sujeita-se aos interesses de ‘quem paga, manda’, com eventuais défices de ética.”

A concluir, Otília Leitão sublinha o caso francês: “De notar que a França que foi pioneira em inserir esta cláusula (artº12.4) no primeiro estatuto do jornalista (1935), voltou a estar na dianteira, com a lei Patrick Bloche, e criou um direito complementar, em novembro de 2016, tendo-o já acrescentado à sua Lei de Imprensa e ao Código de Trabalho, ‘Droit d’opposition’. Este abrange todos os jornalistas com carteira, independentemente dos media, inclusive plataformas na internet. Abrange quaisquer tipos de pressões internas e externas e ofensas às ‘convicções profissionais’. Pela primeira vez está contemplada uma penalização para as empresas que permitam ou fomentem tais ofensas, ou seja, a comprovar-se, perdem os subsídios de apoio.”

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