Opinião pública e opinião política

Ministro da Justiça de quatro governos, bastonário da Ordem dos Advogados e Provedor de Justiça, cargo que se demitiu por não aceitar que a sua acção tivesse efeito prático nulo, Mário Raposo é uma das figuras marcantes do regime democrático instituído pelo 25 de Abril. Neste artigo, que publicou na revista DN/Magazine em 29 de Dezembro de1991, a abordagem do tema permanece actual.

1. O que é a opinião pública? Desde logo, e sem pré-conceitos sociológicos ou de apurada politologia, é uma realidade não coincidente (embora interferente) com a opinião política, já que nesta intervêm vectores estranhos aos que estão na base daquela.

A opinião política, expressa normalmente em eleições com tempos mais ou menos distanciados, tem componentes muito mais pragmáticas ou aplicadas, que vão da «utilidade» do voto à escassez das opções; desponta, pois, de um pragmatismo (mesmo numa acepção dignificada) conjuntural.

O poder da opinião pública na selecção e outorga do poder formal é, pois, um poder condicionado por factores que a ela são alheias, se considerada na sua intrínseca pureza.

Só que em contraponto este condicionamento condicionará o exercício do poder pelos eleitos, que se devem auto-submeter como que a um «plebiscito quotidiano». Isto, claro está, sem que as resultantes que deste sejam captáveis os remetam para uma deriva de coerência quanto aos propósitos anunciados e quanto às metas definidas.

A não ser assim, ou seja, se o poder formal não atender, no seu exercício, aos «sinais» que emanam dos contra-poderes (sociais, institucionais, políticos), logo se aproximará do risco de se firmar numa ideia «transpessoal» do Estado. Embora convencionalmente legitimado (e a mais praticável forma de legitimação política é e continuará a ser a democracia representativa) dissociar-se-á, ou poderá dissociar-se, de realidades históricas que por se radicarem e se destinarem a pessoas concretas cambiam mais celeremente do que os ciclos que, no tempo, separam os sufrágios.

2. Dá-se, para mais, a circunstância de a sociedade, em Portugal, tender a não ser muito afirmativa. Adoptamos e adaptamo-nos com facilidade a «situações». Aceitamos a rotina, quando não mobilizados por estímulos de raiz superior, que raramente surgem. Caímos numa certa timidez perante o que está constituído.

Quer se queira, quer não, uma das nossas constantes caracterológicas é o saudosismo, e este não é apenas aquele do que os poetas falam («saudades de tudo», dizia António Nobre). E mesmo quando não voltados para o passado, o ímpeto de mudança para o futuro basta-se, por vezes, em se ter como que «saudades» dele, do que há-se vir – numa simbiose entre o fatalismo e a crença no providencialismo, venha de fora ou esteja cá dentro.

3. Dá-se ainda o caso de o português que no plano privado (o da sua própria vida) tanto receia a crítica e as más opiniões alheias («mais vale andar no mar largo / do que nas bocas do mundo») é, quando detentor de um poder público, propenso a uma certa indiferença – e a uma certa imunidade – perante o somatório de todas elas, ou seja, perante a opinião pública.

4. Daí o decisivo papel dos «mass media», na medida em que, por um lado, contribuem para a formação da opinião pública e, depois, para a fazer repercutir.

E por isso o espectacular surto de uma sociedade mediática. O poder da Comunicação Social limita, para o bem, o incontrolado exercício dos poderes formais. Mas, para o menos bem, pode potenciar a imagem dos que o protagonizam, promovendo um imaginário colectivo fictício. Isto, sobretudo, na sua vertente audiovisual. Os povos gostam de quem manda e quem aparece com rosto de poder mandar. Despreocupam-se quando alguém os lidera; e os portugueses com especial facilidade, pelo seu pendor providencialista. A mitologia política não é feita de mitos mas de razões de segurança, a menos que assente em nexos de afectividade quase que pessoal.

A imprensa escrita não é, tanto como a televisão, o reino do instante, da imagem, da aparência. Contém elementos mais cognitivos, faz pensar mais, tem um conteúdo quase sempre mais rico.

5. O poder mediático não é um contra-poder: é um poder que repercute os contra-poderes e neles actua.

E, obviamente, aqui quase se poderá concluir: «diz-me qual a televisão que tens, dir-te-ei o país que és». Isto porque ela tudo hiper-dimensiona, directa ou subliminarmente, sobretudo nos momentos em que a opinião pública se tem que exprimir como opinião política.

6. É, pois, trivial que um dos esteios de uma sociedade livre estará, em qualquer caso, na assunção ética, na qualidade e no profissionalismo de qualquer forma de Informação. Um poder mediático instrumentalizado pelo poder político tem um efeito de «boomerang». Vicia, logo à partida, a opinião pública e politiza-a defeituosamente, mesmo que as pessoas de tal se não apercebam.

7. Mas quando verdadeiramente livre, isto é, não instrumentalizada (e disso há excelentes exemplos em Portugal), uma Informação que actue com rigor não é «escrava» da objectividade. A Informação (e maximamente quando exprime o que os italianos chamam de «direito de crónica») é feita por pessoas, e não por robots. E daí, precisamente, a sua liberdade maior, que é a da critica.

Descontado um certo arroubo literário, cada vez terá mais razão Fidelino de Figueiredo (em «O Medo da História», 1957, p. 55): «O jornalista (…) é e não pode deixar de ser um homem de tendências: na sua recolha do material de recursos e emoções, isto é, as notícias, selecciona como o artista, organiza como o historiador, interpreta como o ensaísta e julga como juiz».

Texto reproduzido com a autorização do autor

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