O dever de lealdade dos jornalistas – intervenção de Alfredo Maia no Colóquio Justiça e Comunicação

“O primeiro compromisso do jornalista é para com a verdade – condição essencial da lealdade –, mas a verdade não pode ser alcançada a qualquer preço, pois há circunstâncias – e são muitas – em que a busca da verdade pode ter de ceder perante direitos e valores que não podem ser sacrificados” – afirmou o Presidente do Sindicato dos Jornalistas (SJ), Alfredo Maia, ao intervir hoje no Colóquio Justiça e Comunicação, em Coimbra.

Dedicada à relação entre a Justiça e a Comunicação Social, a intervenção de Alfredo Maia lembrou que o “conceito jornalístico de interesse público” se observa “mediante o fornecimento, pelos jornalistas, de elementos informativos que habilitem os cidadãos a ter um olhar mais amplo sobre a vida, a fazer escolhas e a tomar decisões esclarecidas e reflectidas com impacte na sua vida pessoal e na sua vida em comunidade”. É por isso, sublinhou o dirigente do SJ, que o “interesse público só pode ser um objectivo (também no sentido de uma garantia para a decisão informado dos cidadãos) e não uma capa de protecção para consciências espúrias ou um embuste para satisfazer caprichos”, como é o caso do voyeurismo.

Considerando que o interesse público deve constituir sempre uma “referência na actuação do jornalista, exigindo uma avaliação constante do seu dever de lealdade para com o público, as fontes de informação e com as pessoas objecto das suas notícias”, Alfredo Maia defendeu que “este triângulo virtuoso – público/fontes/visados – deve estar permanentemente presente no exercício do juízo crítico que tem de servir de timoneiro” da conduta quotidiana dos jornalistas, imposto por um “dever de lealdade para com todos esses elementos integrantes do processo comunicacional”.

É o seguinte o texto, na íntegra, da comunicação do Presidente do SJ:

Manifesto por um contrato de lealdade

É muito frequente a invocação do interesse público para justificar escolhas e opções editoriais e mesmo certas práticas e condutas de jornalistas, até quando conflituam com direitos das pessoas, convocando-se neste caso o princípio da concordância prática entre direitos e valores fundamentais em confronto.

Dizemos até, por vezes, que os jornalistas actuam em nome do interesse público, expressão que alguns entenderão exagerada, porque a acção em nome do interesse público implicaria de algum modo uma legitimidade democrática, que se entenderia não ser de reconhecer aos jornalistas, uma vez que não são eleitos nem investidos de um tal mandato por alguém com poderes legítimos para tal.

Actuar em nome do interesse público, actuam os poderes públicos para fazer prevalecer os interesses da colectividade, do bem comum, sobre os interesses particulares, podendo mesmo sacrificar estes.

Os jornalistas, no entanto, actuam ao serviço do interesse público legitimados pela colectividade e pelo Estado, não só através da ordem constitucional vigente, que desde logo alcandora a liberdade de expressão, o direito a informar e a ser informado e os direitos específicos dos jornalistas à dignidade de direitos fundamentais, mas também do reconhecimento que a comunidade de cidadãos confere à função da Imprensa nas sociedades democráticas.

Podemos até dizer que, nos estados democráticos, a liberdade de imprensa é tanto um resultado como uma condição da democracia, pois nenhuma sobreviveria sem a outra e cada uma só tem razão de ser em função da outra.

O reconhecimento da função dos meios de informação pela comunidade é ainda fonte de legitimação, outorgando-lhe a missão de servir o interesse público – mesmo até em condições politicamente adversas, não democráticas ou com entorses à democracia – actuando em benefício do bem comum, mesmo que seja necessário, em certas circunstâncias, agir ao arrepio das normas legais, precisamente em ordem a satisfazer um interesse incontestável.

Por exemplo, a violação do segredo de justiça para denunciar o recurso à tortura como meio – ilícito e absolutamente condenável – de obtenção de uma confissão corresponde até a um imperativo de consciência irrenunciável.

Aliás, a lei penal, a doutrina e a jurisprudência, tanto dos tribunais nacionais como do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, têm reafirmado com clareza o princípio da exclusão da ilicitude e legitimado a conduta dos jornalistas quando esta justamente persegue o interesse público, o bem comum, mesmo quando contende com o “interesse público” representado pelo Estado, precisamente porque a informação livre se destina a capacitar os cidadãos a melhor escrutinarem o exercício dos poderes do Estado.

Note-se que o reconhecimento desse poder de escrutínio popular mediado pela Imprensa é um princípio fundador do próprio conceito de liberdade de imprensa e de legitimação do jornalismo, que entre nós tem as suas raízes modernas nas Bases da Constituição de 1821, aliás um passo inaugural da ruptura da imprensa com o controlo ideológico do Antigo Regime.

“O Poder Legislativo não se distingue senão pela sabedoria das suas Leis e só uma contínua vigilância da sua parte é que pode manter a observância da Constituição: tirada a liberdade de Imprensa, como poderá ser informado das infracções da Constituição?”, reflectia o deputado José António Guerreiro às Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes de 1821.

Numa tentativa de estabelecer um conceito jornalístico de interesse público, podemos dizer que este se observa mediante o fornecimento, pelos jornalistas, de elementos informativos que habilitem os cidadãos a ter um olhar mais amplo e mais profundo sobre a vida, a fazer escolhas e a tomar decisões esclarecidas e reflectidas com impacte na sua vida pessoal e na sua vida em comunidade.

Por isso, o interesse público só pode ser um objectivo (também no sentido de uma garantia para a decisão informada dos cidadãos) e não uma capa de protecção para consciências espúrias ou um embuste para satisfazer caprichos (voyeurismo, por exemplo)…

Embora faça parte do vasto argumentário do discurso de autolegitimação dos media e do jornalismo, a invocação do interesse público e a sua verificação e validação não são sequer pertença exclusiva do jornalista cuja conduta seja susceptível de reparo.

Caber-lhe-á, sem dúvida, essa apreciação, logo na primeira instância que é sempre a sua consciência, e na ponderação ética – bem sei, íntima e tantas vezes dolorosa! Mas, em última análise, é aos tribunais que cabe decidir da relevância de tal interesse e se pode afastar a ilicitude da conduta verificada sob a invocação desse interesse, sem embargo do juízo que também os pares e o público também elaborem.

O interesse público deve constituir sempre uma referência na actuação do jornalista, exigindo uma avaliação constante do seu dever de lealdade para com o público, as fontes de informação e com as pessoas objecto das suas notícias.

Este triângulo virtuoso – público/fontes/visados – deve estar permanentemente presente no exercício do juízo crítico que tem de servir de timoneiro da nossa conduta quotidiana, imposto por um dever de lealdade para com todos esses elementos integrantes do processo comunicacional.

A nossa actividade existe em função do público, do seu interesse; é a ele que servimos, para satisfazer as suas necessidades, esclarecer as suas dúvidas e responder aos seus anseios. Sem as fontes de informação, não seria possível habilitar os cidadãos com informação necessária para compreender o mundo e a agir nele. Sem os visados (que são também público e são também fontes), não haveria simplesmente objecto de notícia. Mas é bom que não transformemos os visados em matéria-prima de uma indústria destituída de valores e indiferente à matriz ética que deveria enformar o seu carácter.

Um dever de lealdade tem consequentemente implícito um pacto de lealdade, aliás um verdadeiro contrato com esse triângulo virtuoso – e virtuoso também e ainda, mesmo quando o nosso olhar subjectivo sobre “certos” visados não resiste à tentação da desqualificação cívica e à depreciação do carácter, como é tantas vezes patente na informação sobre casos de justiça.

Esse contrato assenta existe porque a contraprestação pelo serviço dos media e dos jornalistas não se circunscreve à mera aquisição do bem de consumo que é o jornal impresso ou a audiência de rádio ou televisão, na medida em que está emanente à nossa relação profissional com esse triângulo, um bem que, não sendo transacionável, constitui, na verdade, o capital de maior importância – a credibilidade dos media e dos jornalistas.

De modo que o público, as fontes e os próprios visados sabem retribuir o nosso trabalho com o reconhecimento da nossa credibilidade, renovando a confiança na nossa missão e revalidando a outorga de legitimidade do serviço ao interesse público, que é o núcleo central e irrenunciável da nossa profissão, balizada por uma deontologia – uma ciência dos deveres! – que vai além das próprias normas jurídicas e que justamente legitima a nossa intervenção no espaço público.

É por isso que costumamos dizer que o primeiro compromisso do jornalista é para com a verdade – condição essencial da lealdade. Mas a verdade não pode ser alcançada a qualquer preço, pois há circunstâncias – e são muitas – em que a busca da verdade pode ter de ceder perante direitos e valores que não podem ser sacrificados.

Por exemplo, a transcrição de escutas existentes em processos, e especialmente até as deixadas fora deles por penalmente irrelevantes, constitui um acto extraordinariamente arriscado, e tantas vezes de utilidade duvidosa, do ponto de vista do interesse público, para não dizer uma violação desproporcionada e gratuita de garantias dos cidadãos e dos seus mais elementares direitos de personalidade, que causa compreensível perplexidade aos cidadãos.

É certo que há decisões de tribunais, algumas até recentes, reconhecendo o relevante interesse público do traslado de certas transcrições para a imprensa, mas que isso não sirva de biombo de legitimidade para ocultar uma prática que nos deve manter alerta: a devassa em duplicado, e além do mais alcançando uma amplitude pública de grandes proporções, de conversações tidas na convicção de que se encontravam ao abrigo da curiosidade alheia e cujo conteúdo pode não ser exclusiva ou predominantemente ilícito.

Uma conversação privada – telefónica ou presencial – é um reduto essencial da privacidade que duas ou mais pessoas livremente decidem partilhar entre si, a tal ponto que o seu conteúdo pode abranger até aspectos mais profundos da intimidade dos interlocutores, mutuamente consentido na convicção de que a envolve uma indestrutível cápsula de segredo.

Na verdade, uma escuta e a sua transcrição, organizando, sistematizando e perpetuando a memória de uma série de conversações (recordemos: as escutas ficam gravadas, são transcritas, analisadas, interpretadas, guardadas…) permite à polícia, às autoridades judiciárias e… aos jornalistas que a elas acedam saber muito mais da vida e até da intimidade dos escutados do que aquilo que eles próprios são capazes de recordar-se.

De algum modo a constituição de assistente em processo merece séria reserva, como método desleal de recolha de informações.

A divulgação de elementos processuais (e até sem relevância penal…) durante o inquérito, nas diversas fases do processo e até à margem do próprio julgamento – antes, durante e depois dele, se o houve – constitui uma prática que, se se justifica tantas vezes em razão do interesse público, introduz, por outro lado, um factor de desigualdade extraprocessual que não pode deixar de inquietar os cidadãos nem deixar indiferentes os jornalistas.

Ao contrário da arena do processo, e em particular a audiência de julgamento, a mediatização induz facilmente o risco, que deve ser muito bem ponderado, de uma das partes – e é geralmente o arguido – ser colocada em posição de desvantagem numa contenda em que ele próprio muitas vezes não pode terçar armas, ou só pode fazê-lo apenas em reacção, num segundo momento, ao divulgado, geralmente obtendo menos impacto… ou dando azo a novo pretexto para serem apresentados contra ele factos novos ou mesmo velhos mas reciclados.

Essa desigualdade de armas é mais gritante quando o poder do arguido é desproporcionado, especialmente no que tange à capacidade de reagir e influenciar reacções, capacidade essa que se afere tantas vezes em função do meio social e económico em que gravita.

Este problema pode traduzir um grave risco de desdemocratização da cobertura jornalística da administração da Justiça, em violação do dever de lealdade já referido, e em risco de contaminação da própria Justiça, cada vez mais exposta à pressão externa, que a prazo pode levar à tentação de imposição de normas restritivas e antidemocráticas que afectem o próprio direito à informação.

É por isso que é necessário estarmos atentos e reconhecer que esse é um problema muito importante na relação entre a Justiça e a Comunicação Social: ambas estão obrigadas a garantir a imparcialidade face às partes em conflito, mas esse desiderato torna-se mais difícil de alcançar quando: i) a voragem mediática se apodera do processo, por interesse legítimo do jornalismo na mediação da acção da Justiça ou do seu escrutínio; ii) por impulso de agentes processuais por motivos nem sempre claros; iii) ou por mera curiosidade mórbida ou por voyeurismo repreensível.

É preciso também ter presente o dever imprescritível do jornalista de atender sempre aos direitos das pessoas envolvidas no processo – os arguidos em particular – dando-lhes a oportunidade de dizer pela sua boa a sua verdade antes de publicar a acusação sobre eles, mas sobretudo que não se esqueça que também na administração da Justiça e na procura da paz jurídica tudo tem um fim, um término.

De facto, não se compreende que inúmeros casos sejam sepultados numa vala de silêncio quando o julgamento vai perdendo interesse mediático ou, pior, quando a decisão dos tribunais vai no sentido da absolvição.

Ao longo dos anos, o Sindicato dos Jornalistas tem procurado passar uma mensagem fundamental: precisamente porque é exercido em nome do direito à mediação do escrutínio que o povo nem sempre pode fazer directamente, a credibilidade da cobertura jornalística só ganha plenitude inteira se os jornalistas e os media se obrigarem a publicitar também as decisões relativas aos processos que tenham noticiado. Assim estará cumprido o contrato de lealdade também para com os visados e o público.

Finalmente, uma chamada de atenção para um problema muito importante: a informação em ambiente digital constitui uma forma perigosa de perpetuação da suspeita e de reapresentação sempiterna de presumíveis culpados, apesar de sobre a sua inocência terem transitado há muito decisões.

Uma simples busca num motor na Rede mostra como é fácil demonstrar, e basta sermos suficientemente preguiçosos, o ferrete electrónico que continua a marcar muitas vidas e a segregar muitas pessoas honradas.

Disse

Versão corrigida e actualizada às 23 horas

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