O «contrato» do jornalista

Na sua análise semanal, a provedora dos leitores do Diário de Notícias, Estrela Serrano, abordou a questão dos jornalístas e da política num artigo que intitulou «Ser Jornalista» e foi publicado em 11 de Fevereiro de 2002. Nesse artigo observa que o «contrato» do jornalista é com os cidadãos e a sociedade, que esperam receber dele informação rigorosa e independente.

A presença de jornalistas, no activo, em listas concorrentes às próximas eleições legislativas, provocou um vivo debate nas redacções. Mas a questão não diz respeito, apenas, aos jornalistas mas à sociedade, em geral. Com efeito, o jornalista é um cidadão com importantes responsabilidades. O que diz, ou escreve, determina, ou influencia, o que o público pensa e sobre o que pensa.

Juntamente com as organizações que funcionam como fontes, o jornalista possui um poder e uma autoridade que lhe permitem decidir quem tem voz no espaço público e quem é excluído dele. Daí que, independentemente dos aspectos casuísticos que provocaram a actual polémica, se afigure importante reflectir sobre o que está em causa.

A discussão que tem vindo a público centra-se, no essencial, em dois aspectos: por um lado, o alegado direito de o jornalista, enquanto cidadão, participar activamente na vida pública e política do país, sem abdicar do exercício da sua profissão; por outro, a defesa do princípio de que o jornalista não deve assumir compromissos de natureza partidária susceptíveis de quebrar a sua independência profissional.

Analisando os aspectos formais do problema, verifica-se que as normas jurídicas e deontológicas que regulam o exercício da profissão são omissas relativamente à possibilidade de exercício cumulativo de funções de deputado e de jornalista. Contudo, o estatuto do jornalista define, de forma clara, um conjunto de princípios sobre a natureza, os direitos, os deveres e as incompatibilidades da profissão, que fornecem orientações, permitindo estabelecer analogias e extrair conclusões.

Entre as incompatibilidades definidas pelo estatuto encontra-se o desempenho de funções remuneradas de assessoria e consultoria de imprensa, relações públicas, publicidade, marketing, comunicação e imagem, e, ainda, funções de membro do Governo, presidente de câmara ou vereador em regime de permanência. Não há referência explícita a funções de deputado, o que significa que, no plano jurídico, nada impede que um jornalista se candidate e exerça essas funções. Contudo, uma reflexão sobre esta matéria não pode colocar-se, apenas, no plano legal. Supõe uma interrogação ética sobre o que é ser jornalista.

Os jornalistas são, em geral, muito críticos relativamente aos seus pares que interrompem a profissão para exercerem funções de assessoria de imprensa. De facto, ser assessor de imprensa de uma personalidade ou instituição política, pressupõe um contrato, explícito ou implícito, entre assessor e assessorado, baseado em afinidades pessoais e políticas, que obriga o assessor a um dever de lealdade para com o assessorado.

Ora, o contrato do jornalista é com os cidadãos e a sociedade, que esperam receber dele informação rigorosa e independente sobre o que acontece no mundo. Em troca da independência a que está obrigado, o jornalista é credor de confiança, credibilidade e autoridade, as quais lhe conferem uma legitimidade e um estatuto que o colocam acima de quaisquer interesses e inclinações, sejam eles de natureza pessoal ou política, respeitem a instituições públicas ou privadas.

A expectativa do público relativamente ao jornalista, é, assim, diferente da expectativa face a um político ou um assessor. O público não espera, por exemplo, que um dirigente partidário, ou um assessor de uma instituição, sustentem atitudes de distanciamento, face às instituições a que estão ligados, quando escrevem nos jornais ou participam em programas de rádio ou televisão – não obstante existirem casos de membros dos partidos que assumem, publicamente, posições de independência e, mesmo, de contestação face às posições oficiais do seu partido. Mas é, precisamente, o carácter excepcional dessas posições que as torna notáveis.

Não basta que um jornalista se declare independente. É preciso que o público lhe reconheça essa qualidade. Trata-se, pois, de saber se um jornalista que se candidata a uma eleição numa lista partidária para exercer funções de deputado pode manter a equidistância que a sua condição de jornalista lhe exige, ou se, pelo contrário, existe da sua parte um dever de lealdade e fidelidade às políticas, valores e princípios defendidos pelo partido pelo qual se candidata. Porque, sendo certo que o compromisso de um deputado é, em primeiro lugar, com o povo que o elegeu – tal como um autarca ou membro de um governo saído de eleições – não é menos certo que, antes de ser escolhido pelo povo, o deputado foi escolhido pelo partido para integrar a sua lista. Mas ainda que essa equidistância seja possível, resta saber se os cidadãos concedem a um jornalista que é, simultaneamente, político no activo – como é o caso de um deputado – a credibilidade e a confiança que lhe concediam antes.

Não está, naturalmente, em causa o direito de um jornalista se filiar num partido, religião ou credo, opções que pertencem à sua esfera íntima, mas que não podem ser confundidas com o exercício de um cargo político remunerado, como é o de deputado. A opção de um jornalista pela actividade política é tão respeitável como por outra qualquer actividade. Mas não parece correcto exercê-las cumulativamente.

Importa, finalmente, lembrar que é do direito do público a uma informação isenta, rigorosa e independente que procede o conjunto dos deveres e dos direitos do jornalista.

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