«Novos média, velhos direitos»

A necessidade de regulamentar as novas funções jornalísticas decorrentes das novas tecnologias foi defendida pelo presidente do SJ, Alfredo Maia, na sua comunicação ao 3.º Encontro de Jornalistas do Norte de Portugal e da Galiza, que se realizou em Viana do Castelo em finais do mês de Outubro de 2000.

Antes de mais, cumpre-me agradecer o convite dirigido ao Sindicato dos Jornalistas para apoiar o 3.º Encontro de Jornalistas do Norte de Portugal e da Galiza e afirmar a nossa disponibilidade para expor sem complexos os nossos pontos de vista, assim como para ouvir e acolher as críticas e sugestões que jornalistas, empresários e formadores queiram trazer aos debates.

Gostaria de saudar o Centro de Formação de Jornalistas do Porto e em particular o seu presidente, Luís Humberto Marcos, ele próprio um antigo dirigente da instituição que aqui tenho a honra de representar.

Saúdo igualmente o Colexio Professional de Xornalistas da Galiza e, através dele, os companheiros que, no outro lado do Rio Minho, partilham connosco a paixão por esta profissão cuja vocação de matriz essencialmente universalista faz de nós profissionais realmente especiais.

Este encontro constitui uma oportunidade muito importante para passarmos à acção concreta integrando a organização galega de jornalistas no trabalho de cooperação que o nosso Sindicato tem vindo a realizar no duplo contexto da sua inserção na Federação Internacional de Jornalistas e na Coordenadora Ibero-americana de Jornalistas

Como foi afirmado no primeiro dos dois seminários realizados ontem, aos quais tive o gosto de assistir, o intervalo de tempo que separou este encontro do anterior, realizado há onze anos, foi marcado por profundas alterações no sector da chamada comunicação social, com efeitos indeléveis na informação e na actividade dos que a fazem.

Tais transformações, cuja velocidade, complexidade e alcance surpreenderam muitos de nós, introduziram alterações muito profundas – e por vezes radicais e definitivas – não apenas na organização das empresas, mas também nos processos produtivos e até no conteúdo dos respectivos títulos.

A par da modernização tecnológica que, na última década, acelerou o processo desencadeado no decénio anterior, assistimos ao redesenho institucional de empresas importantes no panorama da informação, traduzido ora na sua reestruturação interna ora na sua integração em grupos de média.

A par de reestruturações que criaram uma horda importante de desempregados e reformados precoces, cujas necessidades de digna subsistência obrigam muitos jornalistas seniores a trabalhar em falso regime de trabalho independente, inúmeros jovens licenciados dos cursos de jornalismo disputam no mercado escasso uma oportunidade de emprego.

Assim, temos um enorme contingente submetido, muitas vezes, a degradantes condições de trabalho, geralmente em regime precário – expresso na contratação a termo, no trabalho à peça em falso recibo verde, quando não em trabalho escravo, traduzido na utilização não remunerada de textos e imagens de jovens estagiários curriculares.

A concentração de meios de informação, por sua vez, agrava a situação de precariedade, devido ao controlo do mercado de trabalho por um conjunto restrito de grupos económicos, limitando a própria mobilidade e liberdade de emprego.

Estão assim criadas as condições objectivas para pôr em crise a própria diversidade informativa, não só pela possibilidade de uniformização de estratégias e critérios informativos, mas também pela reutilização sistemática de materiais informativos. Em última análise, é a liberdade de imprensa e a Democracia, de que esta também é fundadora, que estão em risco.

Assistimos a inovações tecnológicas mais recentes, designadamente as facilidades de transmissão que permitem a impressão simultânea de um jornal em distintos pontos do país, os ganhos de velocidade de transmissão de textos e imagens com paginação finalizada no próprio local de reportagem, a possibilidade de reprodução, nos novos suportes electrónicos (vulgo Internet), dos órgãos de informação tradicionais, bem como a edição de órgãos exclusivamente «on-line».

As novas tecnologias da informação permitem a difusão instantânea da informação e das ideias a velocidades e a distâncias até há pouco tempo inimagináveis e criam possibilidades de interacção de tal forma extraordinárias, que muitos de nós fomos tentados pelo menos uma vez a acreditar que os novos processos dispensam a actividade de mediação que os jornalistas desempenham.

Mas, definitivamente, os jornalistas não são dispensáveis. E, por isso, as novas tecnologias constituem igualmente novas oportunidades de emprego, quer para os jovens que entram na profissão com competências apuradas neste domínio, quer para jornalistas com carreira estabelecida, que procuram novos caminhos profissionais ou encontraram nelas solução para o destino que tomaram, quando sobraram de alguma reestruturação ou os seus postos de trabalho pereceram nalguma falência.

Novas tecnologias representam também novos problemas, preocupando-nos especialmente aqueles que estão a pôr em crise velhos direitos, assim como antigas responsabilidades a que os jornalistas teimam em estar vinculados.

Começando por estas últimas: Ao contrário do que sucede com os órgãos de informação ditos tradicionais – imprensa, desde logo, mas também rádio e televisão -, a produção e disponibilização de novos suportes electrónicos não carece hoje legalmente de qualquer registo como título editorial, com a menção expressa do respectivo responsável e, muito menos, o depósito, em entidade idónea, de cópias das suas edições.

Na ausência de tais exigências, estão criadas as condições para que cidadãos cujos direitos – designadamente o direito à honra e ao bom nome – sejam violados não possam fazer prova das ofensas e ver ressarcidos os correspondentes prejuízos, de tal modo é volúvel o suporte electrónico.

Honro-me de integrar uma organização sindical que sempre defendeu o exercício responsável de uma profissão que corajosamente sabe estribar a reivindicação dos seus direitos na assunção plena das correspondentes obrigações ante a sociedade em matéria ética e deontológica, assim como na sua dimensão civil e criminal.

Por isso, o Sindicato dos Jornalistas inscreve na ordem do dia a exigência da rápida regulamentação desta actividade.

Quanto aos direitos, insistimos em colocar à frente os relativos à protecção da propriedade intelectual dos trabalhos jornalísticos, quer daqueles que são originalmente criados para um órgão de informação tradicional e depois são transcritos para as edições «on-line», quer dos que servem apenas de informação para a criação de outros trabalhos em edições electrónicas autónomas, quer, ainda, das produções completamente autónomas.

Quando falamos de direitos de autor para estes trabalhos, significa que reclamamos para os seus criadores o direito a uma retribuição adicional sempre que ocorre uma reutilização posterior à edição a que originalmente se destinavam.

Mas também queremos falar dos direitos de natureza moral sobre os mesmos trabalhos. Desde logo quanto à sua autoria e à sua integridade.

Ou seja, não é lícito a ninguém, nem sequer à empresa à qual o jornalista está contratualmente vinculado, reproduzir apenas parcialmente ou com alterações o trabalho publicado num suporte original, sem o consentimento expresso do seu autor.

Por outro lado, é legítimo ao jornalista recusar a difusão de trabalhos seus em órgão de cuja orientação editorial discorda – o que decorre desde logo da cláusula de consciência consagrada no Estatuto do Jornalista – assim como recusar a sua inserção em espaços detidos por empresas que não são jornalísticas.

Mas é um verdadeiro escândalo a situação a que chegamos.

Um breve passeio pela web mostra uma panóplia imensa de páginas e portais de coisas que são tudo menos empresas jornalísticas e órgãos de informação, mas que se dão ao luxo de «editar» notícias.

Também é verdade que algumas empresas jornalísticas se não limitam a reproduzir na web os seus jornais de papel e editam órgãos autónomos, mas com algumas interligações com os primeiros. Por um lado, disponibilizam na edição electrónica a totalidade ou partes da edição de papel (ou transcrições de «pivots» de rádio e televisão), a par de trabalhos próprios.

Por outro, redacções alegadamente criadas para desenvolver a edição electrónica acabam por ver o seu trabalho igualmente editado no suporte de papel.

Não temos dúvidas quanto à existência de uma clara violação dos direitos dos jornalistas em matéria de direitos de autor.

Tem vindo a ser experimentada uma nova modalidade de exploração do trabalho dos jornalistas dos órgãos de informação convencionais que não podemos deixar de condenar: a sua utilização como mera fonte de informação – muitas vezes nem sequer citada – para dar origem a uma informação alegadamente própria.

Esta exploração configura uma apropriação ilegítima do trabalho de outrem e coloca gravemente em risco as garantias éticas e deontológicas que oneram o autor da matéria, quer perante as suas fontes, quer perante o público.

Esta exploração vai ao cúmulo de obrigar repórteres de meios convencionais a fornecer continuamente elementos, desde o seu ponto de reportagem, aos redactores de edições «on-line», para que estas sejam permanentemente refrescadas.

Esta prática não confere aos repórteres as adequadas condições de serenidade para executar o seu trabalho e introduz uma terceira personagem no circuito de responsabilidade deontológica entre o jornalista, a sua fonte e o público. Por outro lado, penaliza extraordinariamente a concretização das tarefas dos repórteres e coloca-os muitas vezes numa dupla dependência hierárquica.

Trata-se, portanto, de um novo problema em matéria de organização de trabalho, que releva da completa desregulamentação em que esta nova actividade se encontra. Situação que é especialmente grave nos órgãos exclusivamente editados «on-line».

Tal desregulamentação vai ao ponto de submeter jornalistas a um regime extremamente penoso, com horários extraordinariamente pesados (conheci, há tempos, uma jornalista que entra às sete da manhã e sai pelas oito ou nove da noite, se já nada houver para fazer) e até a obrigação de atingirem quotas diárias de produção.

Por bizarro que pareça, há jornalistas obrigados a fazer ene notícias por dia, sem que o patrão se dê conta da gravidade da exigência, não só para a dignidade profissional daqueles, mas também para a qualidade do seu serviço e os direitos dos seus leitores, que vêem a informação literalmente tratada como uma mercadoria vulgar, realizada numa linha de produção que tanto pode desvendar-lhe as mais recentes descobertas da Física como fornecer-lhe uma grosa de pregos.

Neste contexto, faz dos seus sentido a necessidade de colocar na ordem do dia a necessidade de regulamentar as novas funções jornalísticas, o que passa pela celebração de uma convenção colectiva de trabalho para esta área, fixando as carreiras dos seus profissionais, horários, limites à multiplicação trabalhos, etc.

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