Metajornalismo: a opinião de Pedro Coelho

OS RESERVISTAS

Entre a Esperança e a Desesperança

A crescente influência da licenciatura na área de jornalismo/comunicação no acesso à profissão de jornalismo começa a expressar-se nos anos 90 do século passado, consolidando-se durante a primeira década do século XXI. É esta, aliás, a conclusão de diversos trabalhos desenvolvidos e coordenados por um conjunto de académicos portugueses.

Filipa Subtil identificou, exatamente, o momento em que essa tendência deu os primeiros sinais. Escreveu a autora, em 2009, que “um dos campos emergentes de recrutamento para a profissão é, na década de 90, o ensino superior, em particular a frequência dos cursos em comunicação e jornalismo”. Igualmente em 2009, Manuel Pinto e Sandra Marinho constatavam o mesmo: “As universidades e os politécnicos públicos e privados são os maiores fornecedores das redações”. Em 2011, na sequência de um estudo que coordenou sobre o perfil dos jornalistas, José Rebelo concluía que “o tempo do jornalista de tarimba, autodidata e com jeito para a escrita, com boa voz ou boa imagem, está em vias de extinção”. A conclusão de Rebelo assenta esteio na relação que José Luís Garcia estabeleceu, em 2009, entre o aumento da escolaridade e os anos de profissão: “a escolaridade tende a aumentar à medida que diminui o número de anos de exercício de profissão”. A esse propósito juntemos, por fim, o resultado da observação de Joaquim Fidalgo, em 2004: “Entre os jovens jornalistas portugueses praticamente não” se encontra “um só que não tenha feito estudos superiores nesta área”.

De facto, o acesso à profissão não está condicionado à obtenção de uma licenciatura na área, mas, como reconhecia Nelson Traquina em 2010, numa entrevista que nos concedeu, “os empregadores acabam por selecionar licenciados na área de jornalismo/comunicação”. Constámos isso mesmo nas entrevistas que fizemos aos responsáveis pelos principais grupos de comunicação social em Portugal, num estudo que publicámos em 2015.

Se o diploma na área é o critério que, informalmente, garante lugar na fila de espera para aceder à profissão – onde cada novo candidato  se junta a anteriores  licenciados que ainda não desistiram de abandonar essa antecâmara – o que importa questionarmos agora é, desde logo, a forma como o mercado de trabalho se comporta perante esse “batalhão de reservistas” (para utilizarmos a expressão cunhada por Érik Neveu em 2001) ainda amparado pelo sonho de ser jornalista.

Duas décadas depois, José Nuno Matos recorre à mesma ideia para caracterizar o impacto deste excesso de mão-de-obra diplomada e especializada no mercado de trabalho. Esse “exército de reserva”, como lhe chama, está “cada vez mais disposto a trabalhar gratuitamente”. O problema é que esta oferta maciça de não profissionais, a fazerem o trabalho de profissionais, seduziu os empregadores de tal forma que este “exército” passou a ser “reserva de si próprio, uma vez que o trabalho prestado torna a contratação desnecessária”. É por isso que, como conclui o autor, “as oportunidades de emprego acabam por dar lugar às oportunidades de estágio”.

A ambição legítima destes neófitos, de cumprirem o sonho de chegar à profissão, acaba, assim, por desvalorizar o trabalho, desnatando as redações, substituindo a memória e a experiência pelo seu avesso, com as inevitáveis consequências que essa substituição tem na qualidade do jornalismo produzido.

A permanente renovação de estagiários, a que assistimos em todas as redações nacionais, aliada ao desencanto da geração mais madura, que não se revê na lógica comercial que, desde a década de 80 do século passado, condiciona o jornalismo, contribui, decisivamente, para a deriva a que vamos assistindo.

A renovação de uma redação, fundamental para a perenidade da qualidade jornalística, é hoje um processo amputado. Ao invés de os mais velhos integrarem os neófitos na subcultura da redação, processo natural de socialização descrito por Warren Breed em meados do século passado, esses mais novos integram-se hoje recorrendo aos estagiários mais antigos, replicando, por isso, os vícios associados a processos de integração absolutamente autónomos. Os mais velhos que resistem, criticam, em silêncio, o que observam; sabem que a voz da experiência perdeu, aos olhos de administradores e diretores, a força e acomodam-se, ordeiros, qual pelotão de reservistas à espera de um último estertor.

Entre os novos reservistas que esperam uma oportunidade e os velhos reservistas que desesperam à beira do fim, levantam-se, todavia, vozes iluminadas de coragem e desassombro, que erguem pontes estes os dois pelotões. São a nossa esperança; são o nosso futuro.

Pedro Coelho, CP 820

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