Metajornalismo: a opinião de Paulo Martins

Grávida indiana? Por que diabo?

A interrogação surgiu de chofre: “Porquê escrever grávida indiana?”. À minha interlocutora – que não é jornalista, mas cidadã consumidora de informação – custa a entender a alusão à nacionalidade nas notícias sobre a morte de uma mulher num hospital, causa próxima da demissão da ministra da Saúde. Deixando de lado a discussão sobre casos mediáticos que atiram governantes borda fora, vale a pena refletir sobre a questão. A revelação da nacionalidade justifica-se ou pode conduzir à discriminação de protagonistas de notícias? Quem diz nacionalidade, diz género, idade, etnia, orientação sexual…

O risco de causar dano desnecessário – ao público ou às pessoas sobre quem escrevemos – faz parte do quotidiano dos jornalistas. Não faltam situações em que o dever de informar se sobrepõe aos direitos pessoais, um exercício legítimo, desde que com conta, peso e medida. A discriminação, evidentemente, causa um dano cujos efeitos temos o dever de avaliar.

Uma breve viagem pelos códigos de ética ou deontológicos ajuda a perceber a importância das normas sobre antidiscriminação que em regra incluem, independentemente dos contextos sociais e políticos dos países onde vigoram.

De acordo com o nº 9 do nosso Código Deontológico, “o jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual”. Adotada na revisão de 2017, a formulação procura ser abrangente, mas do texto de 1993, o código preserva não apenas a tessitura como a filosofia subjacente: concentra-se num conjunto de princípios.

Diferente é a opção vertida no código do Conselho de Imprensa da Índia, país de origem da grávida falecida. Aconselha os jornalistas a evitarem referências suscetíveis de discriminar diversos membros da comunidade, como toxicodependentes ou migrantes, mas, atento o potencial de estigmatização de que se reveste a cobertura de casos de HIV e SIDA, reserva-lhe uma parte, mais detalhada, incorporando condutas recomendadas.

Terceiro exemplo, este europeu: o artigo 28.º do código do Conselho de Deontologia Jornalística belga fixa expressamente uma condição: “Os jornalistas só mencionam características pessoais se forem pertinentes para o interesse geral. Ao relatarem essas características, evitam estereótipos, generalizações, exageros e estigmatizações. Devem abster-se de qualquer incitamento, mesmo indireto, à discriminação, ao racismo e à xenofobia”.

Eis a palavra-chave: pertinência noticiosa, necessariamente baseada numa sólida fundamentação. Sendo dispositivos de autorregulação, os códigos recomendam, não impõem. Podem ceder perante o caso concreto, desde que sejam salvaguardados os valores de que são fiéis depositários. Trata-se, portanto, de saber em que circunstâncias o tratamento jornalístico pode traduzir-se em discriminação. A resposta é: quando a referência a algum dos fatores de discriminação elencados no código é feita gratuitamente. Dito de outra forma, quando não é relevante para os cidadãos compreenderem os factos noticiados. Se não escrevemos “português matou”, por que diabo escreveremos “cabo-verdiano matou”?

Bem se sabe que, por vezes, a cobertura mediática fica refém das circunstâncias. A guia-intérprete do Porto que recentemente foi notícia por ter sido agredida, especificou perante as câmaras de televisão que o agressor era um sem-abrigo. O que pode fazer o jornalista? Num direto, nada. Porém, se tiver oportunidade de exercer efetivamente a sua função de mediador, deve ter mil cuidados. Inclusive, neste caso, “atender às condições de serenidade” – está no código – da vítima de um crime. O que pode implicar a sugestão de que meça o impacto do seu depoimento, sem o desvalorizar.

“Regressemos” à grávida indiana. Sim, talvez fosse pertinente identificar a nacionalidade. Como poderia ser ocultada ao abordar o facto de se ter apresentado num hospital sem registo do passado clínico, por estar de férias em Portugal?

Paulo Martins, Carteira Profissional nº 449

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