João Pina: “É preciso dignificar a profissão de jornalista”

No Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, o fotojornalista fala sobre o seu trabalho, sobre a exposição “Operação Condor” que fica em Lisboa até julho e acerca dos desafios do Jornalismo.

Com trabalho publicado em órgãos como “El Mundo”, “The New York Times”, “Grande Reportagem”, entre outros, o fotojornalista João Pina já recebeu vários prémios, incluindo o Estação Imagem 2017 pela reportagem “Rio de Janeiro – Preço pelos eventos desportivos”. Fotografou em muitos locais perigosos, do Afeganistão à Bolívia, passando pelo Egipto. Os avós, Guilherme da Silva Carvalho e Albertina Diogo, foram presos políticos em Caxias e Peniche e o seu primeiro livro, “Por teu livre pensamento”, contou histórias de presos políticos da ditadura salazarista. Os pais, Pina Moura e Herculana Carvalho, estiveram filiados no Partido Comunista, tendo o primeiro sido dirigente e, mais tarde, já fora do partido, exercido os cargos de ministro da Economia e das Finanças. Durante nove anos recolheu imagens e testemunhos em seis países da América Latina para “Operação Condor”, exposição sobre os assassínios de ditaduras sul-americanas (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai com base no pacto que, em 1975, assinaram para a eliminação de elementos das respetivas oposições, tendo causado cerca de 60 mil vítimas) que vai estar patente até julho no Torreão Poente do Terreiro do Paço em Lisboa. Convidado para ‘fellow’ da Nieman Foundation, a partir de agosto estará em Harvard. No Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, fala sobre as suas motivações e acerca dos desafios que o jornalismo enfrenta.

As ligações familiares, os seus avós presos, os pais militantes do PCP: tudo isso tem um peso específico no que é o seu trabalho?

Tem um peso específico no que sou como pessoa antes do meu trabalho. O facto de os meus avós terem estado presos e de ter crescido com essa memória, uma vez que tanto a minha avó como os meus pais sempre fizeram questão de me incluir, tal como ao meu irmão e à minha irmã, nessa questão e de nos levarem aos lugares (por exemplo, fui um número incontável de vezes a Peniche), claro que teve um peso, esteve sempre na minha vida e na minha educação. Tal como o facto de o meu pai ter estado na política ativa durante 30 anos teve outro peso, tal como a questão de eu ter crescido enquanto ele estava nessa situação – tive de habituar-me a ter alguém em casa que aparecia com regularidade na imprensa. E, como algo de particular em Portugal, com toda a gente a considerar-se no direito de opinar sobre coisas de que não faz ideia acerca do que fala – uma coisa curiosa agora é a obra da Joana Vasconcelos e todos viramos críticos de arte, mas, se fosse sobre macroeconomia, se calhar já estávamos calados, é um reflexo do país. No fundo, isso tudo teve peso, tal como os meus amigos, os meus avós, as escolas onde andei, os professores, tudo.

O primeiro reflexo disso foi o livro “Por teu Livre Pensamento” sobre os presos políticos durante a ditadura?

Sim, tinha 20 anos e conhecia estas histórias, algumas delas de forma muito direta. Percebi que as pessoas estavam a envelhecer, iriam morrer e quis criar um registo à volta disso. Foi em 2001, comecei a trabalhar no assunto em 2003 com o meu amigo Rui Daniel Galiza e daí surgiu o projeto. Era para os 30 anos do 25 de abril, mas tivemos uma editora que, afinal, não avançou e, quando morreu o Sérgio Vilarigues, eu disse “Isto não pode ser, as pessoas continuam a morrer e eu disse que ia fazer isto”. Fomos à procura de nova editora, a Assírio e Alvim disse que sim e conseguimos fazer o livro em 2007.

Esse esforço pela preservação e defesa da memória, em nome dos direitos humanos, é também o que está associado a este trabalho da exposição e do livro sobre a Operação Condor?

Penso que essa preocupação, seja de memória histórica ou de atualidade, está presente em tudo o que faço como fotógrafo ou enquanto pessoa. É tentar entender o mundo e o que nos leva a nós como Humanidade a cometer erros e a voltar a cometê-los e a voltar a cometê-los, no fundo, este ciclo é o que me interessa.

E consegue perceber as razões que levam a esses erros?

Não, mas ajuda-me a criar mais perguntas. Olho para mim e não me imagino como dono da verdade e das respostas. Posso contribuir para este mundo em que vivemos por, de um modo ou de outro, ir mostrando, a quem está interessado, outros lugares e realidades que não são a nossa, confortável, de um país em paz do primeiro mundo, apesar dos problemas que temos. É criar esse confronto, esse questionamento entre as pessoas que olham para as imagens e a realidade que ocorre, às vezes do outro lado da rua, noutras do outro lado do mundo, confrontando-as com isso seja por via da memória histórica ou da atualidade. E, depois, existe para mim o óbvio interesse da História, como olhamos hoje para uma coisa que aconteceu há 40 anos e como daqui por 40 anos será olhado o que acontece hoje.

Quais são os principais problemas do Jornalismo atual?

Para mim, e é algo de transversal nos países por onde tenho passado, o principal problema são os jornalistas, no sentido em que as pessoas sentem-se de mãos atadas, à mercê de “n” interesses que não são os seus, nem jornalísticos, não dispõem de poder suficiente para tomar decisões. O problema é estarmos tão desnorteados que achamos que temos de estar subjugados a grupos económicos, a lucros trimestrais, e a “encher chouriços” ao nível da qualidade de informação do que se produz, em vez de nos concentrarmos em, ainda que de forma independente e sem muito dinheiro, produzir informação real, de qualidade e com enorme profundidade. E isso, na minha opinião, é o que os leitores querem da sua imprensa, mas claramente está a falhar na atualidade. Além dos exemplos clássicos do New York Times e do Washington Post, que continuam a produzir jornalismo em grande profundidade, há exemplos como o CTXT em Espanha, feito por ex-jornalistas do El País, de forma independente e com resultados muito bons.

Neste contexto de fortes constrangimentos ao exercício da profissão, como vê o papel do sindicalismo?

Ao mesmo tempo que se fala de fortes constrangimentos também digo fortes oportunidades. O sindicalismo como o conheço peca por estar fechado em algumas fórmulas muito antigas numa realidade nova. Deixei de ser sindicalizado há cerca de oito anos, num dia em que o Sindicato enviou um comunicado sobre um encontro de freelancers e precários no Porto. Escrevi uma extensa carta à Direção a explicar que não eram bem a mesma coisa, porque desafios e necessidades são completamente diferentes. Eu sou freelancer por opção. Nunca tive resposta a essa carta. Isso deixou-me muito desagradado e desvinculei-me. Até hoje não vejo um discurso que não seja proteger os trabalhadores que estão empregados, proteger os precários, algo que é importantíssimo, mas, de facto, o mundo mudou e as redações não são hoje o que foram nos anos 80 ou 90, são algo mais flexível.

O que é necessário?

É preciso também criar condições para defender aqueles que não trabalham em redações. É importante e urgente dinamizar as coisas. Por exemplo, se eu partir uma perna, fico em casa e não recebo um centavo, enquanto um assalariado recebe. Não é culpa do sindicato, nem do sindicalismo, mas a estrutura portuguesa e a europeia estão desenhadas para os modelos antigos e clássicos do proletariado, chamemos-lhe assim. Essa realidade em 2017 é radicalmente diferente. É preciso criar mecanismos que nem necessitam de ser muito rebuscados para pessoas que estejam fora dessa estrutura e queiram estar unidos, representados e com os direitos salvaguardados. Também faço muitas críticas à Comissão da Carteira, pois ouço quase todos os dias serem ditas barbaridades nas televisões por pessoas com carteira profissional sem que haja responsabilização ou aconteça alguma coisa. Felizmente algumas delas já saíram do nosso panorama, mas nós, jornalistas, pecamos muito pelo corporativismo a que estamos associados e pela falta de imputar responsabilidades àqueles que, no exercício do jornalismo, danificam uma profissão que deve ser dignificada. E, para isso, é preciso fazermos auto-crítica. Há um modelo económico que é inegável tal como a crise na imprensa e, portanto, temos de pensar em como dar a volta a isto, criando público interessado no consumo da informação real, pois existem diversas soluções diferentes da atual que não é uma solução.

Em agosto vai estar em Harvard como ‘fellow’ da Nieman Foundation: o que representa?

Tento não me guiar por um caminho fácil da medição sobre “só três portugueses foram aceites” ou “fotógrafos há muito poucos”. Considero-me tão português como europeu, hoje até estou mais à vontade na América Latina do que na Europa, enfim, essa ideia de territorialismo não me interessa. É um desafio tremendo num ano tremendo após a vitória de Trump. Estou há cerca de dois anos sem casa e, nos próximos nove meses e meio, estarei obrigado a ficar num sítio. Por outro lado, é um momento extraordinário na história do mundo para me dar ao luxo de parar para pensar. Vou estar com mais 23 pessoas, cada uma com as suas histórias, em momentos decisivos das suas vidas. E penso se este não será o momento em que estou a despedir-me da profissão de fotojornalista como a conhecia, pois muitos dos meus colegas que passaram pela Nieman hoje não estão a fotografar. É interessante, não me assusta e tenho de tomar decisões, pois há vários projetos encadeados que passam por fotografar e esse exercício é muito interessante. Dá-me um certo gozo que os meus pares tenham olhado para aquilo que fiz e escrevi, considerando que queriam ter-me ali como ‘fellow’.

É um contador de histórias ou da História?

Não me considero historiador, mas sim um contador de histórias através de imagens. Tenho enormes preocupações em relação a como é que o mundo é e será visto e como as coisas me foram passadas.

Nos muitos países por onde passou, sujeitando-se a tantas situações de perigo, teve tempo para sentir medo?

Claro! O medo é o que nos faz sobreviver. Quem não tem medo é louco ou está numa ação suicida. O que nos leva a proteger e não expormos demasiado ao risco é o medo. Há é uns mais ou menos visíveis. E o desafio é perceber quando estou exposto ao medo e ele não é visível e de que forma me posso proteger, pois estou lá para trabalhar.

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