Intervenção do presidente do Conselho Deontológico na Conferência “40 anos da Comissão Nacional de Eleições”

Por ocasião dos 40 anos da Comissão Nacional de Eleições, realizou-se, no passado dia 18 de Novembro, na sala do Senado da Assembleia da República a conferência “A Administração Eleitoral Independente”, onde o presidente do Conselho Deontológico, Orlando César, apresentou a comunicação que a seguir se transcreve na íntegra.

40 ANOS DA COMISSÃO NACIONAL DE ELEIÇÕES
Conferência “A Administração Eleitoral Independente”
Sala do Senado, Assembleia da República, 18 de Novembro de 2014

Exprimir a pluralidade de vozes

Parti para a escrita desta comunicação sem conhecer em concreto a audiência a que me dirijo, mas sem ignorar o simbolismo do acto que a enquadra. Desde logo, rejeitei adoptar uma perspectiva corporativa, sem todavia ignorar que aqui represento o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, uma instância de auto-regulação destes profissionais.
O tema da sessão – A igualdade de oportunidades de acção e propaganda das candidaturas – abre-se a muitas abordagens. Intentarei ser claro, em primeiro lugar, para expor uma mensagem que situe em contexto a problemática da comunicação e que esclareça a acção jornalística. Intentarei relevar o papel deste actor colectivo – os jornalistas – como parte de um campo de campos onde se joga a distinção de inscrever a palavra e aceder à visibilidade e notoriedade públicas. Isto é, ascender à categoria política, à existência na esfera pública.
A comunicação, afinal aquilo a que, na minha óptica, o tema da sessão induz, é um conceito complexo que se abre a muitos significados, a muitas perspectivas e a muitas narrativas. Se comunicar significa literalmente pôr em comum, a comunicação implica um processo, modelos sujeitos a vários dispositivos, funções, mensagens e efeitos.
As três principais funções da comunicação (Lasswell, citado em Esteves: 2002) são “a vigilância do meio”, “o estabelecimento de relações entre as componentes da sociedade” e “a transmissão da herança social”, a que se somou uma quarta função, “o entertainment“ (divertimento) (Lazarfeld e Merton, citados em Mattelart: 2002).
Nesta perspectiva de paradigma dominante, a comunicação actua para a integração, a continuidade e a normalidade da sociedade (McQuail: 2003). Noutra perspectiva, a do paradigma alternativo, a comunicação exprime, designadamente, uma visão crítica da sociedade, rejeita o valor da neutralidade e enfatiza a preocupação com a desigualdade e fontes de oposição.
Face ao processo de comunicação, as formas de organização dos media constituem questões essencialmente de estrutura, enquanto o “comportamento” se refere a questões de desempenho, que respeitam à maneira como os media realizam as suas tarefas, escolhidas ou atribuídas. Perspectiva da qual decorre como se encara o interesse público, o grau da sua aceitação ou contestação.
Do processo de comunicação emergem, pois, diferentes posições, em que se inscrevem vários domínios narrativos. O discurso jornalístico é apenas uma parte do conteúdo e das mensagens difundidas pelos media. Esse discurso compreende ainda dois géneros, um de informação e outro de opinião, a que se soma no espaço do mesmo medium o discurso opinativo de colunistas e comentadores (não jornalistas) e o discurso interessado de fontes profissionais (com intuito de persuasão e propaganda).
É neste ambiente que o jornalismo e os jornalistas devem cumprir a sua função, responder à pergunta de todos os dias: o que há de novo?
Mas a capacidade de perguntar está dependente das condições de intervenção e de acção jornalísticas (independência e autonomia, interna e externa).
São princípios do jornalismo, entre outros, “manter-se leal, acima de tudo, aos cidadãos”, “manter a independência em relação às pessoas que cobrem”, “servir de controlo independente do poder” e “dar voz a quem não a tem”, “lutar para tornar interessante e relevante aquilo que é significativo” e “garantir notícias abrangentes e proporcionadas” (Kovach e Rosenstiel: 2004).
A questão está em garantir a capacidade do medium de usar procedimentos próprios (autonomia) e de não estar submetido a influência alheia (independência), por razões de índole económica ou política. Questão que se afigura fulcral. No entanto, Portugal, conjuntamente com a França, Itália, Grécia e Espanha, integra, pelas características dos sistemas de media e de política, um modelo de comunicação designado Mediterrânico ou Pluralista Polarizado (Hallin e Mancini: 2010).
A natureza dos media depende das interacções que se estabelecem entre sistemas. Este modelo de comunicação caracteriza-se pela integração dos media em partidos políticos, por um desenvolvimento histórico mais fraco dos media comerciais, e por um forte papel do Estado. A compreensão do sistema funda-se em quatro dimensões: desenvolvimento do mercado de media; paralelismo político; desenvolvimento do profissionalismo jornalístico; e grau e natureza da intervenção do Estado no sistema dos media.
Todas estas dimensões são relevantes e ajudam a perceber o grau e a natureza das ligações entre os media e os interesses corporativos e políticos, que acabam por moldar os jogos de poder e influir no estabelecimento da agenda mediática e no tipo de cobertura noticiosa e conteúdos difundidos.
A receita dos media gerada pelos seus públicos é fraca, o que coloca os meios na dependência de receitas geradas pela publicidade, patrocínios e apoios. A contrapartida da obtenção dessas receitas depende do nível de audiências, medido pela adesão dos públicos, mas também pelo grau de empatia que o produto suscita junto dos grupos de interesse, medido pelo feedback (retroacção) que chega aos meios. Entra ainda nesse equilíbrio de resultados virtuosos o interesse accionista. Os detentores de acções das organizações de media exigem a remuneração do capital investido.
O resultado vicioso repercute-se no produto final e em quem o produz. Nesta equação, os jornalistas e outros profissionais são preteridos. Mas também o são os públicos, que mostram pouca exigência quanto à qualidade do que lhes é fornecido. Uns trabalham pelo reconhecimento (a gratificação) e outros aplaudem o entretenimento (a falsa consciência).
Num sistema ideal, o medium “independente define-se e actua enquanto exclui toda a relação de dependência estrutural relativa a qualquer outro actor que não seja a sua empresa editora” (Borrat: 1989). Todavia, tal requeria também um ideal tipo de empresa de media, o que não acontece. Pelo contrário, a dependência repercute-se sobre os jornalistas nos casos em que os directores de informação se transformaram em representantes da administração na redacção ou quando acumulam funções de administradores não executivos.
Também numa perspectiva ideal, o sistema mediático ganhava quanto maior fosse o “número e a variedade” de meios. “Um sistema democrático reclama não só uma pluralidade de periódicos independentes de informação geral como também o pluralismo em cada um dos periódicos e – com não menor intensidade – entre eles” (Borrat: 1989). E essa pluralidade deve consubstanciar-se numa pluralidade de donos de media e não o seu contrário, a concentração.
Ambiente que poderia abrir alguma brecha na uniformidade de ângulos de abordagem induzida pelas fontes profissionais e na homogeneização da cobertura noticiosa replicada a partir da agência de notícias, sem qualquer acréscimo de informação. No início deste século, dois estudos (um académico e outro de uma agência de comunicação) constataram que sete em cada dez notícias tinham origem em fontes profissionais (70%). Hoje a situação pode ser mais alarmante.
O afunilamento ou hegemonia das mesmas fontes encontra correspondência percentual entre o espaço ocupado por figuras públicas que prestam declarações aos media. Num artigo de uma jornalista espanhola (Soledad Gallego-Díaz), publicado em 1994 no diário “El País”, concluía-se que o espaço ocupado pelas declarações dessas personalidades representava mais de 70 por cento nas secções de política e de economia e mais de 50 por cento nas de cultura e sociedade (Quesada: 2004). A realidade portuguesa não deve ser diferente.
Naturalmente, a semelhança que a imprensa oferece, quer em conteúdos quer em rostos, sem muitas vezes acrescentar sequer uma explicação ao que a rádio anunciou e a televisão mostrou, desvia a atenção dos leitores para meios que se pautam pelo sensacionalismo (informação geral) ou para meios especializados (desportivos). Estes, cada qual à sua maneira, inscrevem o conflito “como a categoria chave para a compreensão das actuações próprias e alheias” e decidem e executam “estratégias que, superando os riscos de cada situação de conflito, mobilizam os seus recursos para alcançar os seus objectivos permanentes e temporais” (Borrat: 1089).
O jornalismo, como sistema de classificação da realidade, deveria “proporcionar-nos uma imago mundi” (Aguinaga: 2001). Todavia, no actual contexto dos media, essa imagem mostrar-nos-ia uma visão acanhada e incompleta do mundo, quer no plano interno quer externo, quer nas temáticas abordadas quer nas personalidades que prestam declarações aos media, a que ainda se somam as colaborações de múltiplos comentadores políticos.
O jornalismo não cumpre o papel de nos pôr em contacto com o “ambiente oculto” nem nos apresenta “um retrato verdadeiro de todo o mundo exterior em que estamos interessados” (Lippmann: 2003). Cria, ao classificar a realidade de modo interpretativo, “uma nova realidade” (Aguinaga: 2001), uma realidade construída, aquilo que as pessoas “‘conhecem’ como ‘realidade’, na sua vida quotidiana” (Berger e Luckmann: 1999).
Dessas imagens criadas no ambiente jornalístico e que ficam nas nossas cabeças, quantas induzem preconceitos e estereótipos no raciocínio de todos os dias? Esta interrogação impõe uma outra: Onde estão os jornalistas? Estão ausentes, o que se deve à primazia de um jornalismo de afirmação e de declarações sem mediação, em detrimento da “investigação jornalística ou de outras técnicas para obter informação sobre os factos que provocam as ditas declarações” (Quesada: 2004). A acção jornalística é preterida a favor de declarações sem contexto.
Um filósofo espanhol (Javier Echeverría) inspira-se na alegoria da caverna de Platão, enquanto metáfora da condição humana, para a aplicar aos sentidos, a culturas e a objectos tecnológicos (a televisão e a internet, por exemplo). Aborda, designadamente, a problemática do discernimento entre realidade e ilusão, critica as aparências e interpela a redução da realidade a um princípio único.
Do outro lado da caverna tecnológica não está contemplada a ideia do bem, mas “vislumbra-se, em todo o caso, um complexo emaranhado de interesses económicos, financeiros e empresariais que conformam mercados informacionais locais, regionais e globais” (Echeverría: 2013). Sair da tecnocaverna implica entrar em complexas cavernas empresariais e mediáticas, “cujos proprietários são opacos”. Insta a questionar as cavernas mediáticas que põem em perspectiva confabulações ilusórias.
Após a lista de factos e de análises produzidas em estudos sobre os media, com que procurei enquadrar a problemática, importa extrair uma conclusão sobre o tema da sessão. A igualdade de oportunidade de acção e propaganda das candidaturas é, sem dúvida, uma questão de grande pertinência.
Todavia, a igualdade de oportunidades de expressão não se deve esgotar na propaganda de candidaturas. Deve ser um desígnio de todos os dias dar voz à diversidade e ao pluralismo. Deve ser não só um desígnio do trabalho jornalístico, mas também de todos os espaços dos media em que se expressam opiniões.
Mas a questão que a igualdade de oportunidades suscita implica duas questões de natureza diferente. Uma respeita à estrutura, as organizações de media, e outra ao “comportamento”, a epistemologia do jornalismo.
Quanto à estrutura, as redacções estão reduzidas à sua mínima expressão. A tarefa dos jornalistas em exercício é árdua. Estão desprovidos de meios, de remunerações dignas e até de tempo para executarem um trabalho profissional de qualidade. Escrevem no fio da navalha, literalmente.
Quanto ao “comportamento”, o conhecimento produzido pelo jornalismo funda-se na relevância de factos e acontecimentos. Implica as “fases da justificação”, as quais compreendem a selecção de um tema, a recolha de evidências e, finalmente, a determinação de que os componentes se validam uns aos outros e ao próprio relato (Ekström: 2002). Isto é, pressupõe o mérito do acontecimento para que ocorra o acto jornalístico.
A igualdade pressupõe, designadamente, acesso e diversidade. Mas a diversidade é um requisito e também um benefício da liberdade. E, sem dúvida, a igualdade de oportunidades é ingente e fundamental, mas não se reduz a uma aplicação mecanicista nem se concretiza por obstinação jornalística.
Não cabe ao mensageiro resolver este paradoxo, embora seja ou deva ser seu dever, todos os dias, exprimir a pluralidade de vozes. Isto é, ouvir todas as partes, tal como está inscrito no seu Código Deontológico.

Orlando César
Presidente do Conselho Deontológico
Jornalista, professor do ensino superior (ESE-IPS)
Doutorado em Sociologia

Referências:
Aguinaga, Enrique de (2001). Hacia una teoría del periodismo. Estudios sobre el mensaje periodístico, nº7, 241-255.

Berger, Peter L. e Thomas Luckmann (1999). A Construção Social da Realidade – Um livro sobre a sociologia do conhecimento. Lisboa: Dinalivro.

Borrat, Héctor (1989). El periódico, actor del sistema político. Anàlisi, 12, 67-80.

Denis McQuail (2003). Teoria da Comunicação de Massas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Echeverría, Javier (2013). Entre cavernas: De Platón al cerebro pasando por Internet. Madrid: Editorial Triacastela.

Ekstrom, Mats (2002). Epistemologies of TV journalism, A theoretical framework. Journalism, Vol. 3 no. 3, 259-282.

Esteves, João Pissarra (2002), Comunicação e Sociedade, Lisboa, Livros Horizonte.

Hallin, Daniel C. e Paolo Mancini (2010). Sistemas de Media: Estudo Comparativo -Três Modelos de Comunicação e Política. Lisboa: Livros Horizonte.

Kovach, Bill e Tom Rosenstiel (2004). Os Elementos do Jornalismo. O que os profissionais do jornalismo devem saber e o público deve exigir. Porto: Porto Editora.

Lippman, Walter (2003). Public Opinion. Programa de Estudos Americanos 2002-2003 da Universidade da Virgínia, em http://xroads.virginia.edu/~hyper2/CDFinal/ Lippman/cover.html.

Mattelart, Armand e Michèle (2002). História das Teorias da Comunicação (2ª ed.). Porto: Campo das Letras.

Quesada, Montserrat (2004). La entrevista. In Cantavella, Juan e Serrano, José Francisco (coords.), Redacción para periodistas: informar e interpretar (pp.375-394). Barcelona: Editorial Ariel.

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