Homenagem a jornalista assassinado em Moçambique

Em artigo intitulado «Cardoso» e saído no «Público» em 6 de Dezembro de 2000, o historiador Fernando Rosas (*), do Bloco de Esquerda, denunciava a situação em Moçambique e prestava homenagem ao jornalista Carlos Cardoso, director do jornal por fax «Metical», baleado e morto por desconhecidos quando se empenhava na investigação de um escandaloso caso de peculato.

A 5 de Maio passado, um incidente banal, em Aiube, pequena localidade no Sul da província de Nampula, Moçambique, terminou com a morte, pela polícia, de quatro a oito pessoas, todas da Renamo. A 11 de Outubro, a polícia cercou com blindados a sede da Renamo na Beira, estendendo as buscas às residências dos dirigentes locais e do próprio Afonso Dhlakama. A 9 de Novembro, a Renamo renovou o apelo a manifestações contra os resultados oficiais das eleições: estas manifestações foram reprimidas com extremada violência, inclusive com balas reais, mesmo onde os manifestantes actuavam de forma pacífica. Cerca de 40 mortos, segundo o Governo. A 22 de Novembro, o automóvel de Carlos Cardoso, jornalista respeitado e editor do jornal por fax “Metical”, foi bloqueado por dois veículos à saída do seu escritório, na zona privilegiada da capital moçambicana. Os atacantes dispararam sobre ele dez balas de metralhadora, feriram gravemente o condutor que o acompanhava e desapareceram sem problemas. À noite, Rafael Custódio, jornalista da televisão que rapidamente chegara ao local do assassinato e que emitira a sua reportagem, foi atacado por desconhecidos, que, dizendo-lhe “falaste de mais”, lhe anavalharam a língua e o espancaram até à inconsciência. No dia seguinte, pela manhã, vem a saber-se que na véspera foram encontrados os cadáveres de 83 presos na cadeia de Montepuez, na província de Cabo Delgado, onde foram mais graves os incidentes de 9 de Novembro. Carlos Cardoso, nos dias anteriores à sua morte, promovera já a exigência de um inquérito independente a essas mortes. Correm então rumores de envenenamento colectivo e de intervenção mágica, mas a causa é mais simples: deixados de três a nove dias, segundo diferentes fontes, sem água nem alimentação, cerca de cem presos foram amontoados numa cela de 21 metros quadrados prevista para dez pessoas. Os detidos sem acusação morreram de fome, de sede, de asfixia e de exaustão.

Escrevo sobre um país invariavelmente descrito pelo Banco Mundial e pelo FMI como um caso de sucesso, apoiado por toda a comunidade internacional e no qual 34 por cento dos habitantes têm acesso a água potável. Esta encontra-se quase exclusivamente no extremo sul do país, na capital Maputo, que concentra 80 por cento dos investimentos estrangeiros. A disciplina moçambicana na aplicação da receita liberal tem-se expressado, nos índices macroeconómicos, com um crescimento real do PIB e do investimento nos diversos sectores. Mas, além de, numa economia que parte de tão baixo, as percentagens serem particularmente enganadoras, trata-se de facto de uma forma clássica de “crescimento sem desenvolvimento”. O que se desenvolveu foi a concentração de investimentos (sobretudo estrangeiros) na capital e no seu “corredor” para a África do Sul, aprofundando-se o fosso entre este “país útil” e o “resto”, estagnado e largamente maioritário. A alfabetização a 65 por cento e a esperança de vida a 52 anos, na capital Maputo, correspondem a valores de 25 por cento em Cabo Delgado e de 37 anos na província da Zambézia, respectivamente. O produto «per capita» da capital (1340 dólares em 1998) é mais de dez vezes superior ao do Niassa e da Zambézia. É assim que Moçambique se mantém em 167.º lugar na lista de 174 países analisados pelo relatório anual do PNUD.

A estabilidade de Moçambique é minada por um partido-Estado, a Frelimo, cuja «performance» de bom aluno das instituições multilaterais lhe garante a chancela «free and fair» nas regras de um sistema político-eleitoral que condena a oposição à marginalidade. A Renamo foi o braço regional do poder branco sul-africano, que a armava. A sua própria expressão eleitoral, sobretudo no Norte do país – à luz da sua mentalidade militar e da ausência de qualquer diferenciação programática – exprime a exasperação das populações marginalizadas face ao regime de Maputo. Uma importante excepção foi a lista de cidadãos «Juntos pela Cidade», que enfrentou a Frelimo nas eleições municipais em Maputo, obtendo 30 por cento dos votos e numerosos eleitos, entre os quais Carlos Cardoso.

Num país em que o único jornal diário nacional, a única agência de notícias e a única televisão continuam dominadas pelo Governo, há um sinal de esperança do lado de semanários independentes e de publicações por fax e «on-line». É por isso que Carlos Cardoso foi assassinado, numa clara advertência ao jornalismo de investigação. Isto não significa, claro está, que o Governo moçambicano enquanto tal esteja comprometido com o crime. Mas certamente que há responsáveis políticos, de alto nível, nessa condição.

O Banco Comercial de Moçambique é uma das empresas privatizadas do país, ainda possuída a 51 por cento pelo Estado. Logo após a privatização, descobriu-se que 10 milhões de libras esterlinas haviam desaparecido dos seus cofres. Quando os responsáveis já estavam identificados, surge a acusação de destruição de provas dirigida ao procurador-geral da República, António Namburete, e vinda do procurador- adjunto Afonso Antunes e do ministro Eneas Comiche (também administrador do BCM). O caso foi estancado pela demissão de toda a Procuradoria pelo presidente Chissano, mas Carlos Cardoso não abandonou a pista das conexões políticas.

Cardoso sabia estar sob ameaça, tendo recebido telefonemas explícitos. Ele denunciara vigorosamente a repressão policial das manifestações de 9 de Novembro, mas conduzia também a investigação sobre o grande escândalo do BCM. Para o jornalista, a relação entre a ordem de repressão violenta das manifestações oposicionistas e o impasse dos inquéritos por corrupção era ponto assente.

Por escolher o rigor profissional e a coragem face aos poderes, Carlos Cardoso era um jornalista prestigiado. O jornal que dirigia, o “Metical”, construiu o seu sucesso posicionando-se corajosamente em questões em que o racismo aflorava abertamente, ou contra a imposição pelo Banco Mundial da exportação para a Índia da noz de caju bruta (não descascada) em lugar da sua industrialização em terras moçambicanas. O “Metical” transformou-se numa instituição vigilante, ao serviço da cidadania. À memória de Carlos Cardoso presto a homenagem dos que exigem justiça para si e para o seu país, onde se vivem as horas de breu em que são apagados os sinais de esperança.

(*) Texto reproduzido com autorização do autor

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