Em louvor da santa objectividade

Jornalista e professor de jornalismo altamente prestigiado, cujas reflexões sobre o fenómeno da comunicação social contribuem para dar a este sector uma elevada qualificação, Mário Mesquita proferiu em 1996, numa sessão organizada pela Câmara de Cascais e pelo Clube de Jornalistas, uma comunicação em que revalorizou o conceito de objectividade, que muitos jornalistas já tinham sepultado.

A problemática focada nesta intervenção* — a «objectividade jornalística» no actual contexto dos média — corresponde ao propósito algo provocatório de estimular o debate acerca de um conceito que muitos jornalistas já arrumaram no sótão, entre as velharias sem préstimo.

Dir-se-ia, aliás, que o conceito foi abandonado ou secundarizado, pelo menos a dois níveis: no plano da deontologia, porque a vinculação à «objectividade» deixou de ser considerada pertinente, remetendo-se para outros conceitos, como os de «honestidade», «lealdade», «jogo limpo»; no domínio da prática jornalística, porque, sob o impulso do jornalismo televisivo, o acento tónico parece ter-se deslocado de uma exigência de «objectividade» e »rigor» para outros critérios considerados mais pertinentes, que se articulam em tomo de questões como a criatividade, o trabalho sobre a linguagem, a preocupação em «comunicar» através de uma mensagem apelativa.

Qualquer enciclopédia indica que, desde os primórdios da história da filosofia, o conceito de objectividade surge com a modernidade, paralelamente à emergência das ciências experimentais nos séculos XVIII e XIX. O conceito aparece intimamente ligado às noções de observação e experimentação, valorizadas no âmbito das ciências positivas. Por objectividade designa-se o carácter de «uma realidade que aparece aos sentidos e à qual a percepção atribuí uma natureza real» (1), caracterizando. deste modo, «fenómenos que se prestam a observação e a experimentação». (2)

No caso específico do jornalismo, a objectividade adquire pertinência sobretudo a partir do séc. XIX, no período designado pelos historiadores como «fase industrial da Imprensa». A urbanização, o progresso nos transportes e nas comunicações e o incremento da alfabetização, o alargamento dos públicos ajudaram a criar condições propícias ao surgimento de novas concepções em termos de conteúdo da imprensa.

«Prefere-se cada vez mais a informação objectiva à discussão e à opinião, as notícias sensacionais aos editoriais reflectidos — escreve José Tengarrinha –. Na necessidade de encontrar um público mais largo, o jornal procura manter uma atitude imparcialmente objectiva, dirigindo-se assim a todos, e não a um grupo de leitores ideologicamente afins, necessariamente muito mais restrito». (3)

À comunicação de elite, consubstanciada em pequenos jornais de opinião vai suceder, ainda embrionária, uma comunicação de «grande público», O requisito da «objectividade» na informação aparece ligado à necessidade de constituir o denominador comum entre um conjunto de leitores que se deseja cada vez mais vasto e diversificado, de modo a poder «credenciar» o periódico perante os anunciantes.

«Nesse período – afirma Tengarrinha – os jornais não ficam reservados à classe relativamente pouco numerosa de eleitores censitários, mas pretendem dirigir-se a todos os que sabem ler, cujo número vai crescendo gradualmente. Embora sem esquecer a camada mais instruída, que fornece ainda o grosso dos assinantes, dirigem-se também ao novo público, menos abastado e instruído, com gostos menos exigentes e requintados». (4)

Simultaneamente, a emergência das agências noticiosas, tendo como clientes o universo constituído por todos os jornais e podendo, graças ao telégrafo, ultrapassar as fronteiras nacionais, veio reforçar a exigência de «objectividade».

A objectividade jornalística apresenta-se, não como o resultado de uma reflexão epistemológica acerca do jornalismo, mas enquanto construção resultante da nova estratégia comercial da Imprensa: a extensão e diversificação dos públicos aconselham uma nova atitude, que se traduz num relato dos acontecimentos que seja válido para todos os leitores e não apenas para este ou aquele indivíduo ou grupo de indivíduos.

A relação entre jornalismo e objectividade afirma-se na «fase industrial da Imprensa», mas será no início do séc. XX que o conceito se imporá, nos Estados Unidos da América, como «valor jornalístico», numa espécie de reacção contra o espírito de negócio e o sensacionalismo, que tomaram conta da Imprensa norte-americana, em especial a partir da guerra hispano-americana.

O surgimento nos anos 20-30 da profissão de «relações públicas» ajuda, igualmente, a explicar a «sacralização» da noção de objectividade no jornalismo norte-americano, com o objectivo de distinguir a actividade (jornalística) de recolha e difusão das informações das acções (de relações públicas) desenvolvidas pelos novos «promotores» de notícias.

É nesse contexto que o dever de objectividade será consagrado nos códigos deontológicos e nas escolas de jornalismo que se creditam, por essa altura, como elementos que contribuem para a regulação do sistema. A objectividade jornalística transforma-se, no dizer de John Merrill, num conceito ético («objectivity-as-ethics-concept»).

O que significa na realidade a «objectividade», transformada em doutrina nesse contexto histórico? Creio que podemos situar a doutrina da «objectividade» a três níveis: no plano deontológico enquanto «dever» ou «compromisso ético», prescrito pelos códigos deontológicos; no plano da investigação jornalística, enquanto conjunto de normas processuais; no plano das retóricas, enquanto conjunto de regras de natureza estilística.

A OBJECTlVIDADE NA DEONTOLOGIA

Os códigos anglo-americanos, por via de regra, incluem a objectividade entre as obrigações do profissional de jornalismo. O código ético da associação profissional de jornalistas norte-americanos postula que «a verdade é nosso objectivo último», sublinhando, logo em seguida, que a «objectividade na reportagem de notícias é outra meta, que serve como marca de um profissional experiente.»

Se a tradição norte-americana aponta no sentido da vinculação do jornalista a um dever de objectividade, no espaço europeu – em especial, no espaço francófono – os jornalistas tendem a evitar o conceito, considerando-o. como alguém afirmou, uma «ingenuidade anglo-saxónica». O fundador de Le Monde, Hubert Beuve-Méry diria que «a objectividade não existe; a honestidade, sim».

O dever ético da objectividade é, por vezes, visto pelos profissionais de jornalismo como uma forma de limitar a criatividade dos jornalistas envolvendo-os num espartilho incómodo. Que tipo de espartilho? O conceito de objectividade surge muitas vezes identificado com a prática e a linguagem do jornalismo de agência, das grandes estações de rádio e dos canais generalistas de televisão pública. A objectividade seria, de certo modo, sinónimo de esforço de equilíbrio, neutralidade e contenção.

Nessa perspectiva, esse «ideal» recusaria aos jornalistas a cidadania, ao transformá-los em observadores moralmente descomprometidos. Ou seja, o suposto dever ético de objectividade «torna a Imprensa amoral». O conceito de objectividade seria, na prática, oposto ao de responsabilidade, visto que contribuiria para desresponsabilizar o jornalista.

A escritora Marguerite Duras escreveu a este propósito: «Não há jornalismo sem moral. Todo o jornalista é um moralista. É absolutamente inevitável. Um jornalista é alguém que observa o mundo e o seu funcionamento, que diariamente o vigia de muito perto, que dá a ver e a rever o mundo, o acontecimento, E não consegue fazer este trabalho sem julgar o que vê. É impossível. Por outras palavras, a informação objectiva é um logro total. Uma impostura. Não há, de facto, jornalismo objectivo. Consegui desembaraçar-me de muitos preconceitos, dos quais este é, em minha opinião, o principal. O de acreditar na objectividade possível do relato de um acontecimento». (5)

Esta visão da objectividade enquanto factor de desresponsabilização do jornalista conduziu à adopção de uma atitude de rejeição ou de «fuga» perante esta problemática. Muitos códigos deontológicos ou «livros de estilo» evitam mencionar a palavra-tabu. Entre nós, o Código Deontológico do Jornalista, de 1993, também evita a palavra, embora postule que «o jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade». O livro de estilo do Washington Post constitui um exemplo: «Enquanto os argumentos acerca da objectividade são intermináveis, o conceito de «fairness» (jogo limpo) é algo que os editores e repórteres podem facilmente compreender e cumprir. (6)

A questão epistemológica, demasiado complexa e controversa, conduz os jornalistas a dispensarem a referência à objectividade, sacudindo o jugo de uma espécie de «camisa de forças» que se traduziu – em certos momentos históricos – em constrangimentos no plano estilístico ou no plano da investigação jornalística. Mas se os jornalistas postulam que está ao seu alcance ‘relatar os factos com rigor’, qual o sentido de recusar ou de evitar o conceito de ‘objectividade’?

A OBJECTIVIDADE NA RETÓRICA E NA INVESTIGAÇAO

A «objectividade» converte-se progressivamente de uma problemática e de uma atitude ética num conjunto de normas investigativas e estilísticas. «Com o tempo, a ideia de objectividade assumiu o carácter de “doutrina”, deixando de ser um “compromisso ético” e transmudando-se num “receituário para a acção” – escreve José Marques de MeIo. – Operou-se um reducionismo instrumental, convertendo-se a objectividade em norma, padrão de actuação profissional». (7)

É nesse sentido que a socióloga Gaye Tuchman se refere, num estudo já célebre, publicado nos anos 70, a uma «concepção operativa da objectividade» («working notion of objectivity») (8). Nessa perspectiva, a objectividade constituiria um «ritual estratégico» – composto por normas processuais e estilísticas – cujo objectivo consistiria em diminuir os riscos corridos pelos profissionais em função das limitações inerentes ao seu trabalho e das possibilidades de interpelação pelos outros actores – sociais ou da adopção de sanções por parte dos seus superiores hierárquicos.

Tuchman enumera, entre os processos fundamentais para a construção do «ritual estratégico» do jornalismo, a apresentação de pontos de vista divergentes; o recurso a «citações» e a própria estrutura externa do texto jornalístico.

Nenhum destes processos – quer se trate de procedimentos profissionais, no plano da investigação, quer de configurações retóricas – resolve o problema da objectividade jornalística, mas todos eles ajudam a estabelecer uma certa distanciação entre o jornalista e o produto jornalístico. Ouvir os «dois lados» em litígio numa determinada polémica não garante a objectividade, mas ajuda a configurar uma postura de distância e imparcialidade.

A deontologia apresenta-se, deste modo, como uma espécie de «contrato» proposto pelos jornalistas, enquanto categoria profissional, aos seus públicos. Perante o contraste entre a fragilidade do jornalismo e as exigências de «objectividade» dos públicos, os profissionais propõem-se respeitar um certo número de procedimentos no plano da investigação e da produção do texto, entre os quais se inclui a convenção de separar com rigor notícias e comentários.

Se atentarmos na redacção dos códigos deontológicos, verificamos que, afinal, a objectividade se reconduz a um conjunto de procedimentos. O código da associação de jornalistas norte-americanos descreve, com alguma minúcia, os requisitos postulados pela «doutrina da objectividade» no plano das formas de expressão jornalísticas. «Os títulos do jornal – preconiza o diploma – devem ser plenamente garantidos pelos conteúdos dos artigos que acompanham. As fotografias e imagens de televisão devem dar uma imagem exacta de um acontecimento e não salientar um incidente menor fora do contexto». Na mesma linha de Tuchman se colocam as interpretações que reconduzem a «objectividade jornalística» à adopção de certas configurações retóricas tradicionais do jornalismo. A (estrutura) do «lead» e da pirâmide invertida, figuras típicas do jornalismo de agência, seriam sinónimos de objectividade, na medida em que garantem o destaque do principal acontecimento numa linguagem seca e «objectivadora», de onde seriam rasuradas as marcas de subjectividade do jornalista.

Mas não é necessário proceder a análises muito aprofundadas para compreender que a questão não se resolve através de processos estilísticos. Por ironia, as explicações históricas sobre o surgimento do «lead» acentuam, pelo contrário, o peso dos critérios subjectivos dos jornalistas na construção das notícias. O historiador Michael Schudson associa a emergência da nova estrutura narrativa, no século passado, à própria evolução histórica dos jornalistas enquanto «corporação». De acordo com esta tese, a adopção da «pirâmide invertida» significaria que os jornalistas se consideravam aptos para determinar quais os elementos mais importantes da notícia, sintetizando-os logo no início do texto, em vez de se subordinarem à ordem cronológica. Com a entronização da convenção jornalística designada por «lead» os jornalistas «deixam de ser estenógrafos e passam a ser intérpretes», afirma Schudson.

A CONDUTA DE OBJECTIVIDADE

E A SUBJECTIVIDADE DO JORNALISTA

Noutras fases históricas, a objectividade foi identificada com uma retórica asséptica da informação que tem a sua expressão típica no «jornalismo de agência». A regra do anonimato na área noticiosa constitui um dos seus principais postulados. Ser «objectivo» significou definir uma política de informação baseada no equilíbrio e na ponderação (por exemplo, nas televisões públicas).

Ora, em rigor, o conceito de objectividade jornalística não pode confundir-se com nenhuma dessas acepções. Conforme escreve Daniel Cornu, «a objectividade é a atitude (quanto à pessoa) ou o método (quanto à aproximação) que permite ligar a realidade à verdade, ver «as coisas como elas são», e não é de forma nenhuma realizada por uma política de informação que vise apenas o equilíbrio e a neutralidade. A realidade, em si mesma, é brutal, excessiva, conflitual». (9)

Os jornalistas rebelaram-se contra a objectividade quando ela se transformou em «doutrina», que veio a ser «absorvida pelos manuais de redacção, convertendo-se em certo sentido em norma de estilo». (10) Nos anos sessenta, os movimentos do jornalismo investigativo (no domínio processual) e do «new journalism» (no plano estilístico) contestaram a «doutrina da objectividade» e as respectivas traduções na prática profissional.

Se a «doutrina da objectividade» se manifestava através do apagamento das marcas de subjectividade do jornalista, as novas tendências acentuaram o seu papel criativo. O livro de estilo do Washington Post é sintomático a este respeito, ao afirmar sobre o papel do jornalista: «Embora desde o Watergate se tenha tornado cada vez mais difícil, para este jornal e para a Imprensa em geral, adoptar esse comportamento, os jornalistas devem fazer todos os esforços para permanecer na audiência, para trabalhar nos bastidores e não para ser a estrela, para relatar as notícias e não para fazer as notícias». Esta norma conjuga a reafirmação da regra tradicional do anonimato do jornalista, encarado como narrador oculto, com o reconhecimento (implícito) das dificuldades inerentes à respectiva aplicação. Acresce ainda uma parcela de (in)discreto auto-elogio…

Podem os jornalistas riscar da deontologia a palavra «objectividade», mas isso não lhes evitará o confronto com a problemática em causa. Por mais que contornem o conceito, suprimindo-o dos códigos deontológicos ou recusando-lhe qualquer espécie de validade (ou de operatividade), os destinatários da informação continuarão a estabelecer unilateralmente que as notícias devem relatar os «factos» tal como eles se verificam, ou seja, que a tal «objectividade» – inatingível, por definição – deve constituir-se em critério de avaliação da prática jornalística.

Como não é possível aos jornalistas «objectivar» a realidade, conseguindo apenas «representá-la», os média confrontam-se com a enorme desproporção existente entre a fragilidade das «metodologias» utilizadas na investigação jornalística e as aspirações dos destinatários, que desejam ter acesso aos acontecimentos tal como eles sucederam. Talvez se possa afirmar que a deontologia do jornalismo surge, enquanto construção histórica, como resposta a essa expectativa de objectividade, cultivada pelo público leitor, radiouvinte ou telespectador.

A recusa da «doutrina da objectividade» baseia-se, entre outros aspectos, na afirmação de um direito à subjectividade do jornalista, enquanto investigador, narrador e autor. Essa afirmação da subjectividade do jornalista não é incompatível com a «atitude de objectividade» que é própria do jornalismo e não se confunde com nenhuma doutrina ou dogmática tendente a confundir uma postura de questionamento e interpelação com um conjunto de rotinas profissionais ou de formas retóricas.

No jornalismo, tal como no conhecimento científico, os factos não existem independentemente de quem os apreende. Mas isso não invalida, antes pressupõe uma «conduta de objectividade» (11), para recorrer à expressão de Paul Ricoeur acerca da história. É neste sentido que a Declaração de Princípios da Unesco, de 1983, afirma a este propósito, no seu segundo preceito: «A tarefa fundamental do jornalista consiste em servir o direito do povo a uma informação verídica e autêntica através de uma aproximação honesta à realidade objectiva (…)».

O texto da Unesco refere, seguidamente, as componentes dessa (conduta de objectividade), ao aludir à necessidade de uma «contextualização» («colocando conscientemente os factos no seu contexto adequado»), de uma «explicação» (salientando as suas ligações fundamentais, sem envolver distorções»), e à indispensável presença da «capacidade criativa do jornalista» de forma a que «o público receba um material apropriado que lhe permita formar uma imagem precisa e coerente do mundo, onde a origem, a natureza e a essência dos acontecimentos, processos e situações sejam compreendidos de uma forma tão objectiva quanto possível».

Esta formulação afasta-se visivelmente de uma certa ideia redutora da objectividade, que se traduziria em impedir o jornalista de procurar hipóteses explicativas para os acontecimentos ou de exercer a sua criatividade narrativa e estilística. Pelo contrário, esta concepção apela a uma visão multidimensional dos acontecimentos, na linha preconizada, no pós-guerra, pela Comissão Hutchins: «Não basta relatar os factos com verdade, é necessário dizer a verdade sobre os factos».

Esta «conduta de objectividade» deve basear-se, se não num método – palavra demasiado forte e ambiciosa para se aplicar à produção jornalística – pelo menos num questionário elaborado com vista à «reconstrução dos acontecimentos». Esse questionário jornalístico pressupõe a implicação subjectiva do jornalista.

Permitam-me que transfira para a actividade jornalística a atitude que Ricoeur preconiza para o historiador: nós esperamos do jornalista «um certo tipo de subjectividade, não uma subjectividade qualquer, mas uma subjectividade que seja precisamente apropriada à objectividade que convém» ao jornalismo. (12)

Regulador da vida quotidiana, o jornalismo só tem razão de ser quando se baseia, numa «intenção» e numa «conduta de objectividade», o que não significa ressuscitar uma dogmática positivista, nem rejeitar a intervenção subjectiva do jornalista através da formulação de juízos de valor que se manifestam, desde logo, na selecção dos acontecimentos destinados a constituir notícia. A essa atitude chama o mesmo Ricoeur «subjectividade de investigação» (13), ou seja, implicação pessoal do jornalista na reconstrução e explicação dos acontecimentos.

É interessante notar que, nos anos 20~30, a «objectividade» se transforma em valor jornalístico precisamente quando os jornais concluem que o jornalismo interpretativo é indispensável e, por isso mesmo, aumenta o espaço consagrado a textos assinados. Entre as notícias e os artigos de opinião emerge um terceiro género: a interpretação. A objectividade no jornalismo – escreve Michael Schudson – «transformou-se num ideal precisamente quando a impossibilidade de ultrapassar a subjectividade começou a ser olhada como inevitável».(14)

Postular uma atitude de objectividade não equivale a negar a subjectividade do jornalista, mas antes a implicá-la nesse dever referencial próprio da actividade jornalística. Tão pouco significa negar os limites à objectividade inerentes às dependências, aos ritmos e aos processos da produção jornalística, sujeitos a poderosos constrangimentos relacionados com o tempo e o espaço.

A objectividade jornalística será um mito inatingível? Talvez. Mas – como escreveu Michel Mathien – «representa uma miragem que os jornalistas, na sua maioria, entendem que vale apenas manter com vista a preservar uma profissão bem específica em relação aos numerosos ofícios da comunicação ou das relações públicas em pleno desenvolvimento» (15). O «impacte cultural» desse «mito dinâmico da objectividade permite aos profissionais da informação preservar um poder de resistência, ele próprio muito flutuante conforme os média e as circunstâncias» (16).

O «contrato de recepção» que o jornalista implicitamente celebra com o leitor pressupõe uma «conduta de objectividade» que o distinga do ficcionista, do actor de teatro e de cinema, do relações públicas e do publicitário. Sem esse compromisso com o «real», o jornalismo destrói a razão de ser da sua existência e dilui-se no vasto oceano dos outros géneros de comunicação.

A actual crise dos média, no espaço europeu e português, caracteriza-se pela abdicação da «atitude de objectividade» e pela «contaminação» do jornalismo por outras formas comunicacionais, onde a emoção e a afectividade prevalecem sobre a informação. A ficcionalização, o sensacionalismo e a hiperpersonalização destroem o sentido de «aproximação à realidade objectiva».

É sintomático que, num «guia das profissões» destinado a informar os jovens sobre opções profissionalizantes, se escreva que «teoricamente a função do jornalista é colocar à disposição do público a informação de que este necessita para poder formar um juízo. Hoje esta visão está um pouco desactualizada. Ou seja, assume-se enfim que a imparcialidade e a objectividade são um mito (…)» (17). Decididamente, o universo dos média está em crise…

É neste contexto que se afigura oportuno reabilitar a «conduta de objectividade». Não existe conteúdo informativo sem relação comunicacional, mas, ao contrário do que sugere o tal «guia do estudante», o jornalismo deixará de fazer sentido enquanto actividade autónoma se perder de vista que tem por função «colocar à disposição do público a informação de que este necessita para poder formar um juízo». E, mesmo correndo o risco de parecer «fora de moda», prefiro assumir o meu olhar subjectivo, contrapondo ao relativismo que se molda à lógica de interesses estabelecidos, a velha estatueta da Santa Objectividade.

NOTAS

(1) Thinès, Georges, e Lempereur, Agnés (orgs.), «Dicionário Geral das Ciências Humanas», Lisboa, Edições 70, 1984, p. 647.

(2) Idem, ibidem.

(3) José Tengarrinha, «História da Imprensa Periódica Portuguesa», 2.ª edição, Lisboa, Caminho, 1989, p. 219.

(4) Idem, ibidem.

(5) Marguerite Duras, «Outside – notas à margem», trad. port. de Maria Filomena Duarte, Lisboa, Difel, p. 7 (edição original: «Outside», Paris, Albin Michel, 1981).

(6) O original é como segue: «While arguments about objectivity are endless, the concept of fairness is something that editors and reporters can easily understand and pursue» (Thomas W. Lippman (org.) , «The Washington Post Deskbook on Style», Nova Iorque, McGraw-Hill, 1989, 2ª edição, p. 5).

(7) José Marques de Melo, «Objectividade jornalística: realidade e utopia», in Comunicação: direito à informação, Campinas S. P., Papirus, 1986, p. 100.

(8) Gaye Tuchman, «A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objectividade dos jornalistas», in Nelson Traquina (org.) «Jornalismo: Questões Teóricas e Estórias», Lisboa, Veja, 1993, pp 74-90.

(9) Daniel Cornu, «Journalisme et Vérité – Pour une éthique de l’information», Genève, Labor et Fides, 1994, p.359.

(10) José Marques de Melo, idem, ibidem.

(11) Paul Ricoeur, «Histoire et Vérité», Paris, Seuil, 1955, p.25.

(12) Paul Ricoeur, op. cit., p.24.

(13) Paul Ricoeur, op. cit., p.35.

(14) Michael Schudson, «Discovering the news: a social history of the American newspapers», New York, Basic Books, 1978, p.157.

(15) Michel Mathien, «Les Journalistes et le Système Médiatique», Paris, Hachette, 175.

(16) Michel Mathien, op. cit., p.190

(17) «Guia das Profissões II», edição especial de Forum Estudante, 1996, p.87.

(*) Intervenção publicada no n.º 1 da revista «JJ – Jornalismo e Jornalistas», de Janeiro/Março de 2000

Texto reproduzido com a autorização do autor

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