Divergências de fundo e de pormenor

Em nova intervenção sobre a polémica «Jornalistas e política», Oscar Mascarenhas controverte, no Público de 17de Fevereiro de 2002 , posições assumidas por Mário Mesquita, com o qual a discordância é de pormenor, e com Miguel Marujo, jornalista do PortugalDiário, com quem a divergência é manifestamente absoluta.

Congratulo-me com o facto de o Público ter aberto as suas páginas ao debate das questões relacionadas com o jornalismo e a política, nomeadamente a política partidária. Na edição de domingo passado, dois textos abordaram o tema: se, num deles – o de Mário Mesquita -, não haverá qualquer espanto por aquilo que nele se aprende, no outro – de Miguel Marujo -, jornalista do PortugalDiário, a mensagem agradável que colho está não só na vibração do estilo como, especialmente, pela capacidade demonstrada em rasgar algo que venho temendo se transforme num tabu entre os jornalistas – a noção de intervenção política.

Começo, pois, por este último, mas o Miguel Marujo há-de perdoar-me que passe de largo pelas referências irónicas aos «estagiozinhos», que eu dirigi específica e exemplificadamente ao António Granado – e em tom prazenteiro que, já percebi!, foi muito mal interpretado – e que Miguel Marujo quer assumir para si próprio. Também me há-de perdoar não ser feliz acusar-me de «esconder dos leitores do Público» seja o que for sobre posições do Sindicato sobre os estágios, numa polémica sobre — jornalistas e política! Faz tanto sentido como acusar-me de nunca ter revelado aos leitores do Público que, em 1957, fui passageiro do cargueiro «Alcobaça», da Sociedade Geral! E enfraquece a arguição de quem me polemiza, porque já não se saberá se o faz por discordar do que eu disse ou se por ter contas de outro rosário a ajustar comigo…

Vamos à parte mais substancial e interessante do que diz Miguel Marujo: «Um jornalista faz política.» Ora aí está um formidável avanço em relação à tese de António Granado: «Não, um jornalista não deve fazer política.» Pode, porém, começar a divergência, na frase seguinte: «Mas não deve entrar no jogo político-partidário.»

Vamos ver.

O próprio Miguel Marujo entende que, enquanto dirigente sindical, um jornalista não pode nem deve ser neutral na defesa de direitos e deveres dos seus representados. Mas coloca, como obstáculo, a norma deontológica de que um jornalista «deve recusar funções, tarefas e benefícios susceptíveis de comprometer o seu estatuto de independência». Ora bem: se esta norma devesse ser tomada na extensão que Miguel Marujo parece atribuir-lhe, chegaríamos à perigosa situação de um jornalista não poder ser sindicalista, já que seria uma «função ou tarefa» (espero que ele não faça a injustiça de admitir que possa ser «benefício»…) claramente susceptível de afectar o seu estatuto de independência, pois, como ele próprio o diz – e muito bem – não se pode esperar neutralidade de um dirigente sindical. Por isso, tem-me parecido mais sensato interpretar a norma como referente ao dever de inexistência de uma relação material com funções, tarefas e benefícios que comprometam o estatuto de independência. De outra forma, não se poderia ser cantor de salmos na IURD, leigo incorporado no Opus Dei, sublime príncipe do real segredo na Maçonaria – ou simples mas dedicado vogal da direcção na Columbófila do Barreiro…

A segunda divergência que tenho com Miguel Marujo é a frase seguinte, que até admito que esteja gralhada: «E também espero dele a necessária equidistância do legislador.» Miguel Marujo, meu camarada!, se foi isto mesmo que escreveste, digo-te não, não e não — estarias à beira de um erro trágico para a luta sindical! Não se pode ser equidistante em relação aos legisladores, porque há leis boas e leis más, leis que nos servem e leis que nos oprimem, legisladores que as querem redentoras e legisladores que as desejam sufocantes. E uma das dimensões mais importantes da luta sindical é a batalha no terreno superestrutural das leis, tentando persuadir deputados e governantes, cativando uns contra outros, se necessário, fazer o lado mais nobre do «lobbying». Momentos históricos houve que, para melhor o conseguir, os sindicalistas tiveram de invadir positivamente o território da luta partidária: assim nasceram, nomeadamente, os partidos trabalhistas. Custa-me, por isso, compreender tanta tolerância para com jornalistas candidatos e uma tão rígida incompreensão para com um jornalista-sindicalista que se candidata: é paradoxal.

Por isso, insisto, o facto de um jornalista — para mais sindicalista — querer intervir no terreno partidário não deve entrar a teoria do dever, mas tão-somente no território da auto-interpelação do escrúpulo — e da avaliação da utilidade do gesto.

E é por entender que esta questão não comporta uma apreciação do dever que subscrevo quase integralmente o artigo de Mário Mesquita, que muito bem demonstra nada haver contra a decisão de Alfredo Maia em se candidatar, tanto no plano dos seus direitos de cidadania como no dos seu deveres éticos. Mas precisa: «Outrotanto não direi no plano deontológico». Alfredo Maia «ao intervir politicamente, desta forma, fragiliza a sua posição enquanto presidente do Sindicato», escreve Mário Mesquita.

A minha ligeira divergência está em dizer que isto não é, para mim, algo de deontológico, enquanto referente a normas de conduta, mas se situa no patamar imediatamente inferior, o da avaliação da eficácia da conduta ou aquilo a que se poderia chamar a inteligência da situação. Porque a crítica destes comportamentos deve ser feita pelos termos «concordo – não concordo» – ou seja, refigurando em cada um de nós o protagonismo possível do episódio – e não nos termos de «deve – não deve», isto é, a determinação da conduta do outro.

Mário Mesquita teme que a recandidatura desta direcção sindical venha «transferir para o Sindicato dos Jornalistas, no seu conjunto, o enfraquecimento resultante de uma decisão mal ponderada.» Pode ser, quem viver verá. Mas deixe-me dizer-lhe, Mário Mesquita, com toda a franqueza deste seu velho amigo sempre militante de causas apartidárias, muito fraquinho seria um sindicato feito de jornalistas que vêem os que têm partido como portadores de lepra.

Texto reproduzido com a autorização do autor

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