Diana Andringa: “O sindicalismo continua a ser indispensável”

Dos desafios do jornalismo atual ao potencial do sindicalismo, sem esquecer os seus tempos como presidente do Sindicato dos Jornalistas ou a condenação a 20 meses de cadeia após ser presa pela PIDE, uma conversa com pistas para compreender e melhorar o trabalho dos jornalistas.

De Angola para Portugal, foi na Faculdade de Medicina que começou a ser jornalista com a escrita em boletins universitários. Dos jornais à televisão, com passagem pela prisão de Caxias por causa da PIDE, Diana Andringa construiu uma carreira exemplar, tendo liderado o Sindicato dos Jornalistas e a assembleia geral, além de ser docente e investigadora, doutorada em Sociologia da Comunicação. Entre as entrevistas e os documentários, tem um percurso recheado de histórias. E aproveita a experiência para abordar o universo do Jornalismo tal como ele é hoje.

Como avalia o estado atual do jornalismo?
O jornalismo enfrenta imensos desafios e que são muito perigosos. É costume e fica sempre bem dizer-se que pode ser um perigo ou uma oportunidade, mas tenho a impressão que estamos mais perto dos perigos vários. Um deles é que se diluíram as fronteiras entre jornalismo e comunicação social – hoje em dia tudo é comunicação, todos comunicamos e qualquer pessoa com um telemóvel faz informação com muitas aspas. [pausa] Certo é que, muitas vezes, as pessoas não distinguem e, vendo uma coisa numa rede social, acreditam que a informação é credível. O que era absolutamente indispensável era o jornalismo marcar a distinção pela qualidade. Ora, é muito complicado, porque, para isso, uma das coisas indispensáveis é ter tempo para trabalhar, para pensar, para pesquisar e tudo isso custa dinheiro…

E cada vez há menos tempo?
Cada vez há menos tempo, menos meios para que o jornalista possa fazer isso, é considerado um luxo. O tempo é um luxo, o que é preciso é dar a notícia já, muitas vezes se se parasse para pensar perguntava-se para quê, por que razão estou a dar esta notícia, e no meio disto os jornalistas situam-se entre várias perplexidades e entre várias obrigações conflituantes, pois sentem-se obrigados a andar a correr quando muitas vezes deveriam parar para pensar. Obrigam-nos a ritmos de trabalho que não permitem, de facto, aprofundar as coisas e, deste modo, ficamo-nos só pelos títulos. Sendo assim, ver um título no Facebook ou um artigo num jornal não faz grande diferença, até porque, de qualquer maneira, não foi lido. [Pausa] E esta procura da qualidade, que era indispensável e alguns jornais estão a tentar fazer, tendo eu mais dúvidas em relação às televisões, coincide com uma redução de meios. Isto não acontece só em Portugal, sucede um pouco por todo o mundo, mas há coisas que estão a fazer os jornalistas reagir. Por exemplo, o que aconteceu nos Estados Unidos e devia ser um alarme para todos nós, embora já tivéssemos exemplos de pessoas que chegaram a primeiros-ministros sobretudo porque tinham tido programas de televisão e outras que chegam a presidentes da República porque eram comentadores muito conhecidos da televisão, uns melhores, outros piores, podemos ter a opinião política que quisermos sobre eles, mas já foram produtos televisivos. [Pausa] A profecia do Rangel realiza-se – as televisões elegem presidentes da República. E elegem, muitas vezes nem sequer através do jornalismo, no caso do Trump é através de outro tipo de programa, mas a aparição de um Trump permite que os jornalistas se unam e digam: “Não, isto é demais! Paremos para pensar.” Ainda estamos a tempo para fazer este parar para pensar? Penso que os jornalistas americanos estão a fazer um grande esforço e isso influenciou todos aqueles que estão a passar por eleições como aconteceu, por exemplo, no caso francês.

E nós?
Nós temos sempre um grande problema que é ter chegado um pouco mais tarde do que os outros à liberdade de imprensa. A geração que fez a passagem para a democracia está a desaparecer, a ser mandada para casa ou a retirar-se porque chegou a altura. Quanto à geração mais jovem, por um lado é precária e a precariedade ameaça a liberdade de imprensa; por outro, foi criada num certo fascínio pelas novas tecnologias. E estas podem ser positivas ou negativas, tendo em conta o cérebro que está por trás, mas têm uma certa tendência para nos aspirar o cérebro. Estamos tão preocupados com elas, com a velocidade e esquece-se que não é isso que é jornalismo. [assume um tom mais forte] Jornalismo é a reflexão e, portanto, temos uma geração um bocadinho desfasada do grande questionamento do que é ser jornalista, ameaçada porque é precária e duplamente ameaçada porque não tem uma geração mais velha a servir de amortecedor dos choques. Esta posição de fragilidade pode levar as pessoas a coisas muito tristes que são compreensíveis, mas isso não significa que sejam desculpáveis. Faz-se muitas vezes um jornalismo que se afasta muito das regras básicas éticas do jornalismo, afasta-se da deontologia profissional, mas é um jornalismo de choque que chama à atenção.

Isso sucedeu, por exemplo, com algumas situações verificadas nos recentes incêndios no centro do país…
Estamos a falar de o jornalista se colocar quase à frente da imagem, não respeitar o suficiente as vítimas e o luto, ficando ali com medo de ser repreendido na sua redação ou de ser preterido por outros que sejam ainda mais sanguessugas. E porque se criou a ideia de que a liberdade do jornalista é absoluta e a liberdade de imprensa está acima de todas as coisas e não é assim. O direito à privacidade e à imagem são constitucionais e tão respeitáveis como a liberdade de imprensa. [em tom duro] Os jornalistas devem saber que as pessoas não são animais no zoo, que alguém a quem acabou de morrer a família não deve ser fotografado e que, se querem fotografar, peçam por favor à pessoa. Não é preciso saber o Código Deontológico – basta pensar: “Gostavas que te fizessem isso a ti? Não gostavas, pois não? Então, não faças aos outros!” [Pausa] No fundo, a precariedade, a instantaneidade, a falta de reflexão que esta provoca, a falta de escrúpulo desta competição acrescida da precariedade e do imenso exército industrial de reserva, pois neste momento parece que qualquer um pode ser jornalista, são, em suma, os grandes desafios. E, quando os jornalistas vão apresentar espetáculos ou fazem propaganda das séries da sua televisão no próprio telejornal, estão a permitir que se apaguem as fronteiras. Isto é pôr em causa aquilo que é a sua única razão de existir como profissionais que é serem jornalistas.

Com a experiência de ter sido presidente do Sindicato e da assembleia geral, para que serve hoje o sindicalismo, olhado como algo que pertence ao passado?
Fui uma pessoa com muita sorte e tenho muita pena da Sofia Branco que está a ser presidente num momento particularmente difícil. Eu tive a sorte de ser presidente num excelente momento [sorriso]. Em primeiro lugar, havia um governo relativamente sensível às questões da liberdade de imprensa e da qualidade do jornalismo, além de um secretário de Estado com quem era possível discutir estas questões. Conseguimos criar uma relação importante, por vezes conflituosa, com a magistratura, discutindo questões e forma de a imprensa tratar a Justiça (e parece-me que essas regras se perderam). Do ponto de vista laboral começava a haver problemas complicados com a fase de contração, mas não era um momento tão dramático como hoje. E, como as questões laborais estavam estabilizadas, foi possível que nos dedicássemos àquilo que considero mais importante no jornalismo: as questões éticas e deontológicas. [pausa] Critiquei jornalistas e recebi telefonemas de outros sindicatos a questionar-me por dizer mal dos meus sócios, mas respondi-lhes que também eu esperava críticas quando cometia erros, pois é assim que as pessoas se dignificam e não com corporativismos [gesticula]. Extraordinário é que os patrões conseguiram vender uma tese com a precariedade e o exército industrial de reserva contra os quais nos fartámos de alertar, mas as pessoas aceitaram essa visão. Não perceberam que, quanto mais frágeis estamos, mais necessidade temos de nos unir. Os patrões fizeram vigorar aquele império do terror que é: “Se não quiseres ir para a rua, tens de indicar outro para sair por ti.” Se pensarmos bem é como no filme “A escolha de Sofia”. As pessoas ficam chocadas, mas os patrões fazem e as pessoas aceitam. Era preciso saber dizer não. O sindicalismo hoje está numa posição muito mais complicada, porque, na batalha das ideias, o patronato conseguiu várias vitórias.

E os sindicatos souberam responder?
[Reflete] Penso que os sindicatos não estiveram à altura. Não me refiro em específico ao dos Jornalistas, mas por certo que nós também. Quando era presidente falei com as centrais sindicais para se organizar um debate sobre a precariedade. Disse-lhes que tínhamos o problema de começar a representar os privilegiados, ou seja, os que têm emprego e essa não é a vocação dos sindicatos. A sua vocação é defender quem está precário, quem tem mais problemas. Nessa altura, isto é, 96/98, explicaram-me que era uma tontice, pois os nossos sócios são os que estão empregados. Agora já toda a gente fala muito de precariedade, mas penso que não soubemos precaver-nos a tempo de que era preciso “conquistar” os precários, apresentar-lhes garantias, tentar arranjar uma forma de trabalhar com eles. [Pausa] Nesse aspeto, o sindicalismo não se atualizou tão depressa como o patronato que é muito rápido a ir buscar ideias para despedir. Também nunca fomos capazes de fazer uma coisa que é criar algo com que sempre sonhei e é complicado, embora devesse ser mais fácil com as novas tecnologias: criar jornais, de grande qualidade, feitos por malta que sai das empresas, está desempregada ou reformada e com tempo livre.

Isso seria uma forma de garantir algo diferente?
[Respira fundo] Era uma forma de salvaguardar uma noção de jornalismo com dignidade e capaz de fazer frente às forças do mal que pretendem destruí-lo. Também não nos globalizámos para a resposta e, se somos tantos a falar português, não faz sentido pensar numa imprensa só a pensar em Portugal que é muito pequenino, mas não demos esse passo para a internacionalização. [Pausa] Deveríamos ser capazes de criar uma grande agência de informação a partir do Sindicato, da malta que está solta. Faria muito bem à sanidade mental das pessoas, embora saiba que não é fácil. Entre os jornalistas, o sindicalismo é fundamental para duas coisas: defender os direitos laborais, mas também para fazer a reflexão sobre o que é o jornalismo. E isso é muito desagradável por vezes, torna-se necessário criticar os outros e ser mais feroz – por exemplo, penso que o atual Conselho Deontológico não é feroz o suficiente e tenho muitas saudades do Óscar Mascarenhas que era muito mais feroz. E a crítica é positiva! Mas os jornalistas, tão explorados do ponto de vista laboral, são de uma arrogância extrema em relação ao resto dos seus direitos e face à população. E isso leva-os a perder leitores, espectadores, ouvintes. [Pausa] Sempre pensei que o jornalismo era, sobretudo, a Humanidade, porque para ser um bom jornalista é preciso ser, primeiro que tudo, um bom cidadão. Ser jornalista é algo de mudar o mundo para melhor, é respeitar as pessoas, não é isto que está a ser feito. [Reflecte] Se me dizem que o sindicalismo parece antigo, parece; vem de um tempo antigo, tínhamos normas de trabalho antigas, mas continua a ser indispensável. Ao mesmo tempo precisa, e não é fácil, de se atualizar. E isso significa que precisa de ganhar uma agressividade no bom sentido, ou seja, estamos aqui para estabelecer as regras, pois vamos fazer um trabalho que mostra como deve ser feito.

De novo tirando partido da sua experiência, o que é que uma liderança no feminino traz ao sindicalismo?
Não tenho a ideia de que haja coisas muito diferentes entre homens e mulheres a esse nível – a Margaret Thatcher e a Golda Meir não me deixam grandes esperanças em relação às mulheres na liderança [riso]. Com o tempo e a igualdade, com o caminho para a paridade, perdem-se algumas vantagens que havia. Tempos houve em que os homens pensavam que éramos tontinhas e, quando se entrevistava um ministro e se fazia uma pergunta difícil, ele caía por não estar à espera. Uma mulher no Sindicato dos Jornalistas pode fazer um bocadinho a diferença.

Como classifica o seu trabalho na liderança do sindicato?
[Reflete] Penso que fui boa presidente do sindicato, não sou modesta nesse aspeto, mas isso sucedeu porque apanhei uma boa época, tinha uma boa equipa, com uma espécie de irmão siamês no Conselho Deontológico que era o Óscar, e porque, tenho sempre de dizer isto por ser fundamental, este sindicato tinha e tem um conjunto de trabalhadores fora de série: a dona Vanda, a Maria João, a Isilda, a Isaura, o Serra Pereira, o Leitão, enfim, o grupo que cá estava. O Serra Pereira é, aliás, brilhante como advogado de Direito do Trabalho e a pessoa mais modesta que conheci. [Pausa] Voltando à questão da liderança feminina, pode proporcionar uma baixa de agressividade nas pessoas com quem estamos a discutir, pois não há logo aquele conflito que existe entre dois poderes masculinos. Talvez seja mais fácil criar colaboração, mesmo que isso não seja geral, claro… Por exemplo, penso que a Sofia foi brilhante, durante o Congresso, quando foi entregar o documento sobre os precários e brilhou nas críticas que fez porque as fez com um ar suave, muito simpático. É provável que um homem tivesse mais dificuldades em fazê-las passar, mas a Sofia é jovem, é mulher e conseguiu dizer aquilo tudo com um ar muito simpático e um sorriso que é uma maneira muito melhor de passar a mensagem do que um tom crispado.

Mas a marca fica lá?
A marca fica e, por vezes, fica muito mais. Penso ainda que, como as mulheres estão há menos tempo no poder, somos menos formais do que os homens e a informalidade é algo muito útil. O que é sério é o que se diz, não a maneira como se diz e as pessoas, em Portugal, são todas muito empertigadinhas. [Reflete] Eu cheguei aqui com uma carreira feita e porque não havia um homem disponível, não foi pelos meus lindos olhos, nem pelas minhas capacidades [Risos]. Como sindicalista teria muito a mostrar, mas não no plano profissional porque, apesar de tudo, as pessoas sabiam quem eu era. Talvez uma mulher, por aquilo que se pensa que nós somos, possa apelar mais à emoção, como aconteceu comigo num processo de despedimentos que parecia inevitável. Falei do que aquilo significava para as pessoas e às vezes esquecemo-nos de uma coisa: na frente temos um adversário, não forçosamente um inimigo. Por vezes, mesmo aquela pessoa que nos está a querer despedir pode ter um coração humano. As mulheres aprenderam a negociar de forma diferente e a tratar as questões de um modo que, se calhar, os homens se sentiriam ridículos. Eu não me sinto ridícula a dizer a alguém que esta pessoa não pode ser despedida porque é mãe solteira, antes pelo contrário. Nunca fui boa a negociar a minha parte, mas pelos outros? Nunca me sinto ridícula a defender alguém. Fora isso, tendo uma mulher como presidente do sindicato, é porque elas são capazes de estar em todos os lugares e também podem ser presidentes da República. E é como dizia a Maria de Lourdes Pintasilgo com graça: isto de ser primeira-ministra é como uma mulher ao volante – enquanto está tudo bem, ninguém repara; se correr mal, claro, é uma mulher! [Risos]

Foi presa pela PIDE em 1970. Como tem transmitido às pessoas de outras gerações esse momento marcante?
[Pausa] É complicado porque, por um lado, ser preso é desagradável, quem disser que não teve medo quando foi preso está a gozar, mas, em simultâneo, ser preso pela PIDE era uma honra. Eles tinham suficiente medo de mim para me prenderem! Eu nem fazia nada, coitadinha de mim, era uma miúda, mas tiveram medo de mim o suficiente para me meterem na prisão. Quando cheguei à cadeia e fiquei sozinha na cela, cheguei-me à janela e comecei a recitar um texto do Manuel Alegre que é: “Em maio eu estava na prisão e quero dizer, de certa forma, eu estava no meu posto.” [Pausa] Para estar ali lutei e mereci alguma coisa. De alguma forma orgulha-nos? Sim. Enche-nos de medo por uma coisa: não ser capaz de aguentar, de ceder informações que não se quer ceder. Tive muita sorte e sublinho isto: eu não fui torturada em termos físicos, embora tenha sido, por vezes, interrogada ao longo de um dia inteiro, seguindo sempre antes da meia-noite para Caxias. Não sofri privação de sono, nem estátua, não fui espancada.

Teve outro tipo de situações?
O máximo que aconteceu foi o inspetor Tinoco atirar-me uma máquina de escrever à cabeça, mas desviei-me. Estive isolada, foi pesado, mas, como estávamos tão habituados a ouvir falar de outras torturas, nem considerei isso tortura. Além disso, creio que fui muito ajudada por duas coisas: o meu pai fora colega do Silva Pais e era um homem do regime. Por isso, parti do princípio que não me aconteceria nada de demasiado grave. Talvez pudesse passar pela privação de sono um dia ou dois, mas não me fariam torturas físicas que deixassem marcas nem me submeteriam a certas humilhações. E essa ideia ajudou-me, evidentemente. [Pausa] Por outro lado, tenho um estranho sentido de humor e, quanto mais medo sinto, maior o sentido de humor. E isso fez-me ultrapassar diversas situações. [Reflete] Fui presa no emprego com mandado de captura e tudo. Levaram-me para interrogatórios na António Maria Cardoso, mas vários amigos meus tinham estado presos e explicaram-me que nos podiam vencer pelo ridículo se nos sentirmos dessa forma a mentir.

Houve fases mais delicadas?
Houve alturas péssimas [Respira fundo]. Tive a sorte de estar numa sala com a janela virada para o rio, nos curros do Aljube ou numa cela virada para trás, em que só se via o muro, não sei como reagiria. Via árvores e rio e, portanto, dias maus eram aqueles em que havia nevoeiro, pois deixava de ver e ficava sem algo no espaço para onde me evadir. Mas a memória permitia-me recitar de cor vários poemas e, com isso, passava dias inteiros acompanhada. [Pausa] Ainda assim, talvez o pior de todos os momentos tenha sido quando recebi a nota de culpa: tinha 22/23 anos e a primeira nota de culpa que chega pede pena de prisão de 20 a 24. Já estava em regime normal, com duas pessoas fantásticas – a Fernanda Tomás e a Graciete Casanova – e, como costumava ser oito a 12 anos de prisão, 24 não me passava pela cabeça. Pensei: “Se for condenada nisto, suicido-me!” Até porque não estava, nem ninguém estava, à espera que o fascismo caísse. A Fernanda deu-me uma resposta dura, mas certeira: “Um comunista não se suicida! Logo se vê o que acontece.” [Risos] Felizmente, lá baixaram aquilo para oito a 12 e depois acabei por ser condenada a 20 meses.

Viveu outros episódios marcantes?
[Respira fundo] Há outro momento que é complicado explicar às pessoas: sair da cadeia. Devia ser um momento de imensa alegria, é-o por certo, mas é, ao mesmo tempo, um sentimento horrível. Estava numa cela com outras presas e só pensei que a Graciete iria ficar sozinha e se iria abaixo. Esse momento em que se sai, sabendo que ficaram outras pessoas presas, leva-nos a pensar que, de alguma forma, estamos a traí-las, a abandoná-las. [Pausa] Estar preso é, portanto, algo que mete medo, mas ao mesmo tempo é exaltante, porque formos capazes de lutar e vencer o medo. [Reflete] Ao mesmo tempo há coisas bonitas que já não se verificam hoje: quando saí da cadeia, o meu pai morreu oito dias depois e a minha mãe estava muito preocupada. Fui à procura de emprego, liguei para o Diário de Lisboa e falei com o administrador, Lopes do Souto. E a sua resposta é algo de extraordinário, daqueles tempos – era um patrão, mas, sabendo que eu tinha saído de Caxias, disse-me que tinham prendido outro jornalista e eu iria substituí-lo. [Pausa] Estas são algumas daquelas coisas de que não nos esquecemos. Havia uma solidariedade em relação a quem vinha da cadeia que se expressava nisto e em episódios como o do Handel Oliveira, um jornalista de direita, que, vendo a PIDE junto a um sítio onde se registara uma explosão esquisita e eu fora como repórter, se ofereceu para colocar as minhas perguntas para eu não ficar em risco de ser presa outra vez. Isto é camaradagem! [Reflete] Não recomendo seja a quem for, mas a cadeia ensinou-me coisas muito bonitas. Não sou uma pessoa muito agradável, mas consegui aprender as fissuras que há no ser humano. Vi uma pide que torturou pessoas e, no dia em que tive uma visita, o meu sobrinho com quatro anos veio a correr, agarrou-se a mim, pendurou-se no meu pescoço e ela começou a chorar! E isto ensina alguma coisa sobre os seres humanos.

Partilhe