A importância do diálogo entre os jornalistas e a comunidade científica, para elevar a qualidade do jornalismo sobre ciência e saúde, foi salientada por Alfredo Maia, presidente da Direcção do Sindicato dos Jornalistas (SJ), numa intervenção no II Congresso Luso-Brasileiro de Estudos Jornalísticos e no IV Congresso Luso-Galego de Estudos Jornalísticos.
Os congressos decorrem em simultâneo, no Porto, a 17 e 18 de Março, dedicados ao tema “Jornalismo, Ciências e Saúde” e organizados pelo Centro de Estudos da Comunicação da Universidade Fernando Pessoa.
Alfredo Maia, que participou no painel “Jornalismo, Medicina e Saúde: Que interacção?”, na manhã de 17 de Março, salientou também a necessidade da formação contínua dos jornalistas e das instituições de ensino superior se abrirem ao diálogo para a concepção de cursos de formação especializada e, ainda, de processos de validação académica de competências profissionais.
A participação das empresas no processo de qualificação dos jornalistas é também imprescindível, assinalou Alfredo Maia. Primeiro, reconhecendo que a formação dos profissionais é um elemento de valorização da própria empresa; depois, promovendo a especialização dos jornalistas e contando com esse factor na organização das Redacções.
É o seguinte, na íntegra, o texto da intervenção do presidente da Direcção do Sindicato dos Jornalistas:
No final de uma das suas últimas “presidências abertas”, o Presidente da República chamou a atenção para essa espécie de atavismo que parece justificar perpetuamente senão os nossos erros colectivos, pelo menos as nossas insuficiências, expresso na atitude que nos leva a tolerar as más práticas profissionais, a negligência, a impreparação e a irresponsabilidade técnica e pessoal e traduzido no aforismo segundo o qual “em todas as profissões há bons e maus profissionais”.
O Dr. Jorge Sampaio, que falava justamente no encerramento da semana que acabava de dedicar à Educação, introduziu uma nota de pedagogia da responsabilidade profissional que não pude esquecer desde então.
Disse o PR – e cito de memória – que há porém duas profissões nas quais manifestamente não deve – não pode – haver “maus profissionais”:
– Os médicos, pela reconhecida delicadeza do objecto do seu trabalho – a concepção, o nascimento, o desenvolvimento, a saúde e a própria vida das pessoas;
E os professores, pela enorme e por vezes decisiva responsabilidade na formação das crianças, dos jovens e até dos adultos, a qual ultrapassa a mera transmissão de conhecimentos necessários ao rendimento escolar, pois é igualmente decisiva na formação psico-social e cívica dos cidadãos.
Modestamente, gostaria de acrescentar um grupo profissional que manifestamente deve “descolar” com urgência dessa comiseração atávica e dessa desresponsabilização cúmplice que também continua a envolver jornalistas e o jornalismo.
O mau jornalista não é apenas aquele indivíduo de quem os leitores podem recear má prestação ou duvidar dos respectivos créditos, contornando, à cautela, os respectivos trabalhos na leitura do periódico do dia ou duvidando, por sistema, da sua valia quando invocados por terceiros.
No que diz respeito ao tema que hoje nos reúne – o jornalismo, a ciência e a saúde – , é tão mau o jornalismo que de forma impreparada dissemina informações erradas, mal interpretadas ou insuficientemente confirmadas e cruzadas, como o que irresponsavelmente difunde factos parcelares e superficiais de realidade mais complexas sem cuidar de procurar explicá-los o melhor possível e de evitar o alarme gratuito.
O mau jornalista faz, em regra, mau jornalismo e o mau jornalismo destrói o que de mais caro há na essência do jornalismo – a credibilidade, a responsabilidade dos jornalistas e da empresa jornalística e até a própria liberdade de imprensa.
De facto, um exercício deficiente do jornalismo não contribui apenas para degradar, pelo menos a prazo, a credibilidade dos órgãos de informação nos quais esta prática seja visível e persistente, induzindo efeitos indesejáveis na própria sobrevivência daqueles.
Além do ruído que mais tarde ou mais cedo levará às relações entre os jornalistas e as suas fontes (no sentido amplo, entendo-se como fonte todo aquele que possui informação de relevante interesse), a crise de credibilidade que resulte de desconfiança nas capacidades de interlocução e de mediação pode levar as fontes a arrogarem-se o direito de negociação ou de selecção prévia dos profissionais aos quais estão dispostas a prestar informação.
Uma primeira conclusão evidente é a de que a sociedade em geral e as pessoas – singulares e colectivas – que contribuem ou intervêm no processo informativo ou beneficiam deste, são crescentemente exigentes relativamente à qualidade do jornalismo e às competências dos jornalistas, desde logo pelos efeitos do poder de intervenção no espaço público destes profissionais.
Se a primeira condição para diminuir a incidência do mau jornalismo e melhorar a credibilidade é a aposta na sua formação e adestramento (e disso falarei mais adiante), o instrumento que mais concorre para a sua responsabilização é, contudo, o diálogo entre estes profissionais e os múltiplos agentes que concorrem para o seu trabalho.
Já sabemos – e há neste auditório quem o explique de ciência mais sólida – que justamente uma boa parte do processo informativo assenta em grande medida na permanente negociação entre fontes e jornalistas, aferindo reciprocamente a credibilidade e a competência, na base das quais se estabelecem relações até bastante duradouras.
Todos nesta sala certamente conhecemos casos de relações interprofissionais entre jornalistas e cientistas de tal modo sólidas – também e sobretudo do ponto de vista do reconhecimento da capacidade dos primeiros de acolher e interpretar e da qualidade e valia dos segundos – que tal garantia nos bastaria para prosseguirmos a jornada sem preocupações.
Acontece que o quotidiano das relações entre os Média e os cientistas ou os agentes da saúde nem sempre beneficia da sorte de relacionamentos regulares entre as mesmas pessoas que permitam o conhecimento – e a avaliação permanente – das respectivas capacidades.
A dimensão e a diversidade das agendas das Redacções, a complexidade das matérias que estas são chamadas a tratar todos os dias e a resistência à especialização que persiste nalgumas empresas jornalísticas conduzem, com frequência, a situações de carência de jornalistas preparados para estabelecerem um diálogo produtivo com as fontes e para realizarem em tempo útil um trabalho que informe e ilustre minimamente um público crescentemente interessado e por vezes ávido de novidades, para não dizer tantas vezes mais qualificado para decifrar o tema do que os profissionais que era suposto fornecerem-lhe a informação pretendida.
Os desafios que hoje se colocam a um jornalismo de qualidade – portanto o bom jornalismo, o jornalismo responsável – não se situam somente ao nível da crescente exigência do público, em virtude da democratização do ensino, do alargamento da escolaridade, da expansão da universidade, da disseminação de conhecimentos através dos meios de comunicação de massas e mesmo da democratização da intervenção no espaço público através dos modernos meios digitais.
A própria produção e a difusão de conhecimentos científicos adquiriam velocidades e dimensões nunca vistas, a rápida circulação de novas descobertas ultrapassa instantaneamente as fronteiras da comunidade científica e questiona a solidez dos compêndios, os rumores e as inquietações sobre os seus efeitos, benefícios e perigos viajam pelo Planeta em segundos.
Se, muitas vezes, nem os mais adestrados jornalistas de ciência e/ou de saúde, confrontados com uma novidade de tomo inesperada, não estão senão preparados para traduzir um despacho de agência noticiosa e colocar apressadamente duas ou três questões a um ou dois especialistas, o que dizer dos que de forma alguma estão identificados com o tema e não têm entre os seus contactos uma ou outra fonte “iniciada”?
Com o afã de dar a notícia, imposto por vezes por chefias sedentas de novidade e empenhadas em garantir o espaço, muitos jornalistas – sejam especialistas de ciência ou saúde ou especialistas de generalidades – estão hoje obrigados a decifrar por vezes em escassas horas os enigmas que muitos dos seus leitores levaram anos de Universidade e até de investigação a compreender.
Em situações como esta, um mau jornalista cederá facilmente à tentação de escrever algo que imagina ser uma notícia, para satisfação do chefe e perigo para a saúde da leitura, precipitando conclusões, palpites e interpretações erradas e até alarmantes.
Mas um jornalista escrupuloso e responsável – portanto, um bom jornalista – há-de procurar pacientemente alguém que o ajude a compreender em pouco tempo matéria para a qual os cientistas ou os médicos se prepararam durante anos e na qual se especializaram ou na qual os seus camaradas “especialistas” levam já tempo de tarimba, de esforço autodidacta, de frequência de cursos e acções de formação ou mantenham reservas da sua própria formação universitária, nos casos em que esta fora feita nas áreas científicas.
O resultado de tal esforço será necessariamente mais positivo e será seguramente mais honesto, mas corre sério risco de não estar à altura da exigência crescente do público e sobretudo para contribuir para o esclarecimento adequado dos leitores ainda menos preparados, razões pelas quais se impõe um esforço em várias frentes para alterar a situação e melhorar a resposta qualificada do jornalismo.
A primeira frente é a da formação dos jornalistas, condição indispensável à realização de uma profissão mais exigente desde logo consigo própria, e por isso inquieta com as exigências que o seu exercício vai colocando, face às mudanças aceleradas e às expectativas do público.
Nesse sentido, a formação ao longo da vida e a formação especializada constituem instrumentos sem quais a nossa missão profissional se encontra condenada a constituir-se mera câmara acrítica de eco, tantas vezes distorcido, de saberes estranhos.
A segunda frente é o espaço de diálogo entre as instituições de ensino e os profissionais, especialmente as suas organizações representativas, com vista à identificação de necessidades formação e ao desenvolvimento de soluções, naturalmente no respeito pela autonomia de cada uma. Posso garantir que estas são possíveis.
Tendo já testada a formação pós-graduada em Jornalismo Judiciário, na qual o Sindicato dos Jornalistas se tem empenhado, com a colaboração de uma importante parceria entre o Cenjor-Centro Protocolar de Formação de Jornalistas e a Universidade Católica Portuguesa, está já instituído o Curso de Pós-Graduação em Jornalismo em Medicina e Saúde, com início em Maio próximo, no âmbito de uma parceria com a Universidade de Coimbra.
No plano da formação contínua e da formação contínua especializada com recurso a instituições de ensino superior, outros projectos estão em preparação, animando ao mesmo tempo a perspectiva de novas colaborações, para as quais o Sindicato dos Jornalistas espera contar com a abertura das universidades.
A terceira e não menos importante frente de intervenção são as próprias empresas jornalísticas. Em primeiro lugar, é necessário progredir face à insuficiente abertura das empresas para a melhoria da qualificação dos jornalistas ao seu serviço e é necessário trabalhar para vencer resistências à formação ao longo da vida.
Os empresários devem consciencializar-se de que esta não responde apenas aos naturais anseios de satisfação intelectual dos jornalistas, pois a valorização constante de tais profissionais representa também a valorização do seu trabalho e, por conseguinte, da prestação colectiva da empresa.
O Sindicato dos Jornalistas tem investido muito nesta frente, especialmente ao nível da negociação colectiva, não só porque a formação é um direito essencial dos seus representados, mas também porque constitui um instrumento de credibilização e de responsabilização da profissão.
A quarta frente de acção situa-se ainda no âmbito das empresas jornalísticas, e, em concreto, ao nível da identificação das apetências e capacidades dos jornalistas no seio da organização redactorial, na atribuição de tarefas e responsabilidades adequadas à experiência e às competências dos profissionais e, finalmente, a uma razoável organização do trabalho na Redacção.
Se em certas redacções persiste uma forte resistência à especialização dos jornalistas em áreas fundamentais, noutras o reconhecimento desta ou daquela especialização visa frequentemente a mera resolução de problemas editoriais conjunturais.
De facto, há ainda muitas situações em que a suposta especialização é reconhecida apenas quando temas que requerem maior identificação com as linguagens, os saberes, a complexidade e fontes qualificadas se tornam ou permanecem “interessantes” na agenda dos média.
É certo que o quadro está em mudança nos últimos anos, mas tarda em adaptar-se ao ritmo das mutações e à intensidade das exigências externas – do mercado – mas também a crescente consciencialização dos jornalistas para o seu papel social.
A quinta frente envolve um renovado diálogo entre os média, a comunidade científica e as instituições e os profissionais de saúde, visando a identificação e caracterização dos papéis, métodos, objectivos e constrangimentos próprios de cada um.
Iniciativas como este congresso, e especialmente o painel em que tenho o gosto de participar, representam importantes oportunidades de diálogo interprofissional, mas é necessário encontrar formas de torná-lo mais permanente.
Pela parte do Sindicato dos Jornalistas, posso manifestar toda a disponibilidade para a realização de iniciativas e acções concretas que permitam estabelecer um diálogo duradouro e consequente, designadamente em colaboração com as organizações profissionais da Saúde e com instituições de ensino e de investigação e grupos de cientistas.
A sexta e importantíssima frente – e assim voltaria à primeira – são as instituições de ensino superior, chamadas a responder a extraordinários desafios colocados pela Sociedade, não apenas em função do problema que se convencionou designar “empregabilidade”, mas essencialmente das respostas exigidas aos profissionais.
Face às exigências colocadas aos jornalistas e também ao reconhecido mérito de muitos deles no seu trabalho quotidiano, é necessário que as instituições se empenhem no diagnóstico da situação quanto às capacidades para as múltiplas tarefas dos jornalistas; na promoção de oferta de formação contínua e especializada, especialmente para profissionais que abandonaram estudos; e, ainda, na concepção de processos de validação académica de competências profissionais de jornalistas.