Declaração sobre o serviço público de televisão

Perante as insistentes e generalizadas críticas contra a falta de definição do Serviço Público de Televisão, o Sindicato dos Jornalistas, valendo-se da competência e do conhecimento do sector televisivo por parte de Avelino Rodrigues, membro da sua Direcção, estruturou um documento que apresentou em conferência de Imprensa e submeteu a debate público.

O Serviço Público de Televisão foi tema de grande debate interno e externo do Sindicato dos Jornalistas (SJ) durante o ano de 2001. Consciente da sua responsabilidade como estrutura de reflexão e de intervenção no espaço público, o SJ decidiu apelar à opinião pública e aos responsáveis da política audiovisual para um debate sobre o Serviço Público de Televisão, que esclarecesse a sua necessidade, a natureza e âmbito, a forma de financiamento, a sua estrutura, o modelo de gestão e as responsabilidades dos profissionais.

Perante opiniões tão contraditórias, mas quase sempre esparsas, sobre todos estes aspectos, não só entre o Governo e a Oposição, mas também entre correntes do próprio partido do Governo e entre jornalistas, líderes de opinião e público em geral, o SJ entendeu que não valia a pena perder tempo com aspectos isolados e lançou o desafio para o debate de um modelo integrado, adiantando propostas concretas como ponto de partida.

É verdade que outras vozes, já antes, tinham feito sugestões pró e contra o serviço público ou algum dos seus aspectos, mas sem grande eco nos meios de comunicação. A novidade de uma discussão globalizante e de ser o SJ a apontar saídas corajosas deram ao debate um impacte singular.

A discussão processou-se inicialmente ao nível da Direcção sindical, durante cinco meses, passando depois por um período de consulta a investigadores e personalidades do sector. Também foram consultados os delegados sindicais e o Conselho de Redacção da RTP, embora sem grande sucesso. O texto inicial passou por quatro versões até ser assumido como proposta formal da Direcção, que viria a ser divulgada na imprensa em 18 de Outubro de 2001.

Uma semana depois, o SJ promoveu um debate público na Casa da Imprensa, em que intervieram o ministro da Cultura, Augusto Santos Silva, os professores Eduardo Prado Coelho e José Barreiros, o presidente do Conselho de Opinião da RTP, Consiglieri Pedroso, e o recém-nomeado director-geral da RTP, Emídio Rangel, além de outras personalidades presentes no auditório, que registou enorme afluência.

O documento do SJ (que, sendo embora de responsabilidade colectiva, foi essencialmente estruturado por Avelino Rodrigues, membro da Direcção cujo conhecimento profundo do sector televisivo lhe conferia atributos excepcionais para tão exigente tarefa), caracteriza-se pelos seguintes pontos:

1) a qualidade da informação e da produção cultural é uma exigência da democracia e só se garante se for livre;

2) a livre concorrência tem permitido minimamente a qualidade dos meios de comunicação social, na medida em que o mercado funcione, mas um mercado pequeno só pode suportar a concorrência de pequenos projectos ;

3) um projecto televisivo de qualidade, que sirva a cidadania e promova a identidade da nação, é um projecto dispendioso e sem lucros, não podendo resultar do nosso mercado (pequeno, pobre e inculto) e só podendo organizar-se como serviço público, pago pelo Estado;

4) a concorrência entre o serviço público e o sector privado deve basear-se na qualidade e não nos lucros da publicidade, a qual deve ser entregue às privadas (sem outros recursos senão os comerciais) mas as privadas deverão pagar ao Estado um imposto especial sobre a publicidade;

5) o serviço público assenta num canal generalista popular (com grande representação das Regiões) e é complementado por um segundo canal destinado a segmentos específicos;

6) deve ser repensada a filosofia isolacionista dos Centros de Produção das Ilhas, que deixaram de ter a importância histórica de outros tempos e devem servir para promover as Regiões no todo nacional;

7) o canal internacional deve servir para afirmar as comunidades da diáspora perante o país, ao passo que o canal África deveria transformar-se em canal federado de cooperação lusófona, fora do serviço público;

8) a autonomia política do serviço público implica que a Administração da RTP seja designada pela Assembleia da República e não pelo Governo;

9) o serviço público de TV é essencialmente um projecto de produção nacional, que só pode avançar se mobilizar a participação dos profissionais, em especial dos jornalistas e de todos os criativos.

Para conhecimento e análise de todos os interessados, adiante se transcreve na íntegra o documento apresentado a debate:

DECLARAÇÃO SOBRE O SERVIÇO PÚBICO DE TELEVISÃO

Os jornalistas democratas sempre entenderam que a comunicação social é a respiração da democracia, pois é a informação que alimenta e anima a opinião pública e, assim, torna possível a participação dos cidadãos na gestão do Estado e no controlo dos actos do poder. Entre todos os média que actuam sobre o espaço público, a televisão é seguramente o meio com maior capacidade de integração do corpo social, a tal ponto que hoje a democracia não pode prescindir de uma televisão democrática. Reconhecendo a capacidade da TV para potenciar o acesso dos indivíduos à vida colectiva e, reciprocamente, patentear perante a nação as vivências individuais, grupais e regionais, o SJ junta-se a todos os que lutam para evitar que esta arma seja desviada das suas responsabilidades sociais ou, pior ainda, utilizada para a manipulação do público.

A opinião pública mobilizou-se nos últimos tempos para o debate sobre a televisão que se faz em Portugal, especialmente sobre as disfunções da RTP e o descaminho das televisões privadas, estando na ordem do dia escândalos e crises que afectam a credibilidade do medium, com todo o impacte ambiental sobre o espaço público. Perante os excessos dum liberalismo sem princípios que cobre toda a sorte de arbitrariedades, tem-se acusado a RTP de deixar passar esta oportunidade de se afirmar como alternativa, no pressuposto de que sobre o Serviço Público já tudo foi dito e que apenas faltaria a coragem de agir.

O SJ não acompanha este voluntarismo, antes observa que estamos longe de um consenso minimamente alargado sobre a natureza e âmbito do Serviço Público e sobre as formas de financiamento e de gestão. Não há consenso entre o Governo e a Oposição, nem sequer entre os ministros do mesmo Governo, muito menos entre os diversos grupos de pressão que violentam a opinião pública. Por isso consideramos oportuno estimular este debate e avançamos uma reflexão global, sem preconceitos de originalidade, sublinhando consensos onde eles afloram, e incorporando inclusive algumas ideias de outras origens que vemos próximas das nossas.

1. Sobre a necessidade do Serviço Público

Não estamos no mundo dos anjos, mas na selva do mais forte que obriga as empresas comerciais à lógica do mercado. Sabemos que a finalidade legítima das empresas comerciais é tentar sobreviver e obter lucros que compensem o esforço do capital – e não educar o povo nem empenhar-se na promoção da identidade nacional. Esta é a função do Estado, a quem compete garantir a qualidade de participação dos cidadãos. Também não estamos em democracias avançadas, com mercados exigentes que podem levar a iniciativa privada a concorrer em patamares de qualidade, numa dinâmica que por sua vez fomenta uma opinião pública mais exigente e mais rigorosa. Aquela concorrência de qualidade que fez a história da liberdade da imprensa, aquela cumplicidade histórica de jornalistas+audiências+publicidade (que permitiu o equilíbrio, no fio navalha, dos grandes jornais independentes) não parece viável em Portugal, na presente fase de desenvolvimento.

A dimensão do nosso público pode pagar, quando muito, a qualidade de alguns projectos de imprensa e de rádio (que honram o nosso espaço mediático, pese a sua modéstia no contexto mundial) mas não pode comportar as despesas descomunais de televisões exigentes. É uma debilidade estrutural do mercado português, pequeno, pobre e inculto, que talvez suportasse uma estação comercial ao lado de uma pública, mas nunca duas estações comerciais, além da RTP. Ora a pior solução foi a que foi tomada, por decisão política irresponsável mas agora irreversível, que condena as duas comerciais a uma concorrência suicida. Esta simples constatação conduz-nos a compreender a crise actual das televisões privadas, obrigadas a captar consumidores massivos, através de uma programação condescendente.

Não chegando sequer à média de seis anos de escolaridade, Portugal é o país da União Europeia com menos oferta cultural e mais dificuldades de acesso à informação e cultura e, por isso, é o país europeu que mais precisa de um Serviço Público de Televisão, que promova o desenvolvimento colectivo e dê a cada cidadão a qualidade de programas a que tem direito, tanto nos conteúdos como na forma.

Ora a democratização da cultura não coincide com os objectivos das televisões comerciais. Mesmo que quisessem ter consciência da sua utilidade pública e tivessem vontade de respeitar os alvarás, as televisões privadas portuguesas sempre terão de privilegiar um modelo facilitista que arraste audiências maioritárias. Num mundo em que vale tudo, gato por lebre é mais barato e dá mais lucro (enquanto o público se deixar enganar). O mercado serve para justificar tudo, como se ele fosse o único axioma da hora presente. Este apriorismo redutor chega a iludir alguns profissionais e leva-os a arriscar o seu nome na produção de conteúdos que desmerecem da sua competência profissional.

Dentro da lógica do mercado, a experiência prova que a espiral dos lucros e dos investimentos é insaciável, só podendo abrir-se alguma brecha para uma estratégia de qualidade, na medida em que ela aumente a credibilidade da empresa e esta possa gerar novos lucros. Mas quando é que Portugal atingirá esse estádio das sociedades avançadas, em que a qualidade faz vender ?

Quer se trate de produção própria, quer se trate de seleccionar os melhores programas de produtores externos ou das opções de programação do horário nobre, a qualidade da televisão em Portugal não está na mira das privadas, pelo menos neste momento – é uma mais-valia social que só o Estado pode e deve pagar. E todavia as estações privadas não estão dispensadas da qualidade de programação, que necessariamente decorre da concessão pública do alvará e do seu objecto social. Uma empresa privada socialmente responsável terá de encontrar formas de regulação, evitando que os “comerciais” pervertam a programação e canalizando alguns recursos da publicidade para o fomento de programas de interesse público, que não têm alternativa de financiamento.

Nesta controvérsia do Serviço Público, o que está em jogo é simplesmente a identidade nacional, como nunca esteve: as novas tecnologias e estratégias comerciais estão a conduzir à concentração dos média, reduzindo-os à uniformização, com risco da diversidade e do pluralismo e deixando sem defesa os interesses locais e nacionais. Nenhuma empresa comercial está segura de escapar à lógica da globalização. E sobretudo nos pequenos países, onde a internacionalização das empresas será mais inexorável, não se vê outra forma de preservar a autonomia nacional da programação senão através de uma empresa de propriedade pública.

O Sindicato dos Jornalistas luta pela valorização de um Serviço Público, mais livre que os serviços privados de Televisão. Mas o SJ compreende as dificuldades presentes das televisões comerciais, respeita a sua utilidade pública, como factores de diversidade e de concorrência e, claramente, reconhece o brio de muitos dos seus profissionais, com realce para as equipas jornalísticas que não esqueceram a deontologia profissional e marcaram a diferença dos telejornais. Mas a Informação não é tudo numa estação – e é preciso estar atento ao aproveitamento perverso que certas estações possam fazer da qualidade dos seus jornalistas para se arrogarem uma credibilidade alargada que a restante programação desmerece.

O SJ convoca a opinião pública e todos os jornalistas a apoiarem a coexistência da televisão pública e privada em Portugal, já que a democracia e a qualidade estão do lado da concorrência e não do monopólio, como está visto. Mas há que ter a coragem de apontar os erros, condenando a hipocrisia e a falta de escrúpulo de alguns programadores que, disfarçando (mal) os seus propósitos demagógicos, invocam o suposto respeito “democrático” pelo público para justificarem uma oferta de baixo nível. A verdade é que são eles que embotam o gosto do povo, ao encherem de produtos inferiores o horário nobre, reservando para horas mortas os programas condignos. O SJ igualmente adverte os responsáveis da RTP para a obrigação de não copiarem os erros das privadas, que na circunstância são menos desculpáveis e cavam o descrédito do Serviço Público.

2. Sobre a natureza e âmbito do Serviço Público

O Serviço Público televisivo não pode suprir uma política de Educação nem compensar as debilidades do sistema escolar. Mas é um complemento indispensável de aculturação, um espaço de democratização de objectos culturais e uma rede de relações integrantes da cidadania. Prolonga a escola noutro comprimento de onda e acompanha o crescer do indivíduo em todas as dimensões. É por essa razão que o SJ apoia uma definição de Serviço Público de Televisão como componente de um projecto de formação continuada, numa dinâmica de desenvolvimento do país. Esta política deverá formatar a estrutura funcional do serviço, isto é, deverá ter como suporte uma estação imbuída de uma filosofia de promoção dos valores integrantes da comunidade, seja da sua identidade nacional ou dos direitos de cada cidadão, a todos os níveis da produção e da programação. Se é certo que esta responsabilidade primacial cabe ao Serviço Público e não tem objectivos lucrativos, não é menos certo que as estações privadas terão que ser estimuladas na sua responsabilidade social de procurar a qualidade, seja por exigência profissional, seja por respeito ao público, embora não sejam obrigadas a um serviço público que ponha em risco a sua lógica financeira.

Na opinião do Sindicato dos Jornalistas o Serviço Público há-de exprimir-se numa grelha que seja generalista nos temas e conteúdos, pluralista nos valores e opções, universal quanto aos públicos destinatários de todo o país, de acesso aberto e gratuito ou sem taxas adicionais. Este projecto só pode ser realizado por uma estação pública autónoma, livre de condicionamentos publicitários e de sujeições partidárias – e não pode ser reduzido a uma lista de encomendas negociada com um qualquer produtor de conteúdos. O SJ reconhece a utilidade pública dos programas privados com qualidade, mas considera que estes bons programas privados não integram o conceito de serviço público, já que não prescindem de objectivos lucrativos, directa ou indirectamente.

3. Sobre a forma de financiamento

Na Europa predomina o modelo misto de financiamento dos operadores de serviço público: fundos estatais, taxas, publicidade, patrocínios de programas, vendas de direitos, acordos de programação e exploração de canais temáticos. O sistema misto é defendido pela União Europeia de Radiodifusão e apoiado pelas resoluções sobre “o futuro do serviço público de radiodifusão” do Conselho da Europa, bem como pelas directivas comunitárias da “televisão sem fronteiras” e pelo próprio Protocolo de Amesterdão (que integra o Tratado). Este modelo misto de financiamento é pacífico na Europa (a Inglaterra e a Finlândia foram mais longe, recusando a publicidade na BBC e na YLE) e apoia-se numa cultura do interesse colectivo, da credibilidade do Estado e da responsabilização democrática dos governos, sem dar de barato a consciência generalizada de que, se a televisão custa dinheiro, cada um pagará menos se a publicidade ajudar.

Ora o nosso ambiente cultural é diferente: sempre tivemos dificuldade de estabelecer consensos alargados e, no caso da RTP, tudo convida à polémica, em razão de traumas históricos que não se esbatem. E assim, aquilo que representa um compromisso razoável e pragmático nas democracias europeias – não é caso único – acaba por transformar-se num impasse em Portugal. De facto, é muito frágil a base social de apoio do nosso Serviço Público, perante a pressão dos grupos económicos e dos conflitos ideológicos, que exploram os deslizes de coerência, não só na praça pública mas também nas instâncias de Bruxelas. Por isso não parece possível defender por mais tempo o status quo, ou seja o actual sistema de financiamento da RTP substancialmente dependente da publicidade, que vai contra a lógica do mercado e é cada vez menos aceite na sociedade civil. Mas não há que temer pelo futuro da empresa, já que a opinião pública não é inconsciente e seguramente será sensível a uma proposta honesta e clara, como esta: se no cumprimento das suas atribuições essenciais o Estado democrático assume a necessidade política do Serviço Público, terá que assumir consequentemente o seu financiamento.

O Sindicato dos Jornalistas analisou a qualidade da programação da RTP e concluiu que, para a mobilização da opinião pública, é preciso desde já que a estação dê sinais claros de que vale a pena gastar dinheiro com o Serviço Público. O muito que já se faz não é reconhecido porque a imagem da empresa anda desacreditada pelos erros de gestão e por inabilidades primárias. Por outro lado, é preciso falar com clareza sobre a forma de financiamento. E a verdade é que o modelo misto de financiamento continua a envenenar todas as conversas sobre televisão em Portugal. Propõe-se portanto que a televisão pública desista da publicidade, em favor das televisões comerciais, as quais em contrapartida seriam sujeitas a um imposto especial sobre as receitas publicitárias. Por sua vez, o serviço público seria basicamente assegurado pelo Orçamento do Estado, ainda que complementado com patrocínios de programas (institucionais e outros) e também por vendas de direitos e serviços, acordos de programação e exploração de canais temáticos codificados. Sem qualquer ingenuidade, é preciso ponderar o risco de as privadas começarem por bater palmas ao exclusivo publicitário, na mira de virem a subtrair-se às contrapartidas fiscais. O SJ reconhece as dificuldades da proposta, especialmente em períodos de contenção financeira. Já não seria pouco se de imediato se definisse o princípio ( modelo puro, sem publicidade) embora admitindo uma fase de transição negociada entre os partidos parlamentares. A RTP é que não pode aguentar por mais tempo a actual indefinição. O debate está aberto sobre a natureza do Serviço Público e o seu modelo de financiamento. Os jornais, os partidos, os intelectuais não podem fugir ao assunto. E, no final, que se apurem consensos ou, em último caso, que ganhe quem tiver mais votos no Parlamento da nação.

4. Sobre a estrutura do Serviço Público

O Serviço Público universal, generalista, pluralista e gratuito terá que assentar no Canal1, que deve oferecer todo o género de programas dum canal popular responsável, desde a informação ao cinema e desde o desporto às artes de palco, porque o povo precisa de informar-se e de divertir-se, mas também precisa de referências culturais que estimulem o desejo de partilhar da herança cultural da Humanidade. Quer nos temas quer na forma, a RTP1 terá de ser um canal cívico que não pode prescindir de critérios de qualidade. Não podemos resignar-nos a ser o povo mais inculto da Europa, com dois ou três picos de génio para minorias esclarecidas. A grelha do Serviço Público irá assim estimular uma produção nacional em língua portuguesa, que vá à procura dos nossos valores identitários e os elabore em produtos acessíveis, não só numa base nacional mas também regional.

Além disso, há que produzir programas especializados, que sirvam para alimentar gostos cada vez mais exigentes e para promover a imagem do país no estrangeiro. Se não for o Serviço Público, quem gastará dinheiro sem dividendos para promover a vida pública institucional e também o nosso património, as nossas artes, a nossa música, o nosso teatro, a nossa cultura étnica e também os gostos mais requintados e menos vulgares? E quem se arriscará na inovação estética e tecnológica, saindo do conformismo dos formatos consagrados? É todo um programa de valorização da RTP1.

Pelo seu lado, a RTP2 tem de reforçar a sua vocação de canal alternativo para públicos diferenciados ou especializados (a não confundir com as designadas “minorias”). Deve ser clarificada a filosofia e o formato do anunciado “canal com notícias”(?) assegurando-se que a cadência e o tratamento dos noticiários não ponha em causa a marca original e o prestígio do canal. Mas é legítimo esperar que a “2” venha a ser apoiada pela comunidade cultural : intelectuais, políticos, fundações, universidades, fazedores de opinião não podem ficar à espera que o maná caia do céu – antes se exige o seu apoio, as suas críticas e as suas ideias.

As Delegações Regionais poderão desenvolver-se até virem a constituir uma verdadeira RTP3, sem rede de distribuição própria, mas representando um projecto de expressão regional nos canais nacionais. Seria ridículo imitar a FR3, mas o modelo francês deveria inspirar não só a produção local de notícias (como já se faz) mas também a produção de documentários, debates, festas e musicais (para difusão regional e também, criteriosamente, na cadeia nacional). Esta resposta à vida das regiões, dando-lhes projecção nacional, faz parte evidentemente do Serviço Público e teria contrapartidas imediatas na implantação regional da estação pública, com efeitos estratégicos incalculáveis.

O país só terá a ganhar se a RTP for capaz de antecipar-se à tentação de canais regionalistas, tendencialmente divisionistas e paroquiais, que a dimensão do país não suporta e que inevitavelmente estarão condenados ao fracasso (por falta de dinheiro, de conteúdos e, sobretudo, de recursos humanos) mesmo tendo em conta as maiores possibilidades do digital. O modelo deveria alargar-se às Regiões Autónomas, cuja experiência nesta matéria merece ser ponderada.

É óbvio que a produção regional serviria também para dar algum conteúdo à RTPi, que finalmente descobriria a sua vocação de canal interactivo entre o berço e a diáspora da nossa emigração (a par de outros programas de produção própria ou retomados dos canais nacionais, quer da TV pública quer das privadas) assim construindo um projecto objectivo (que nunca teve).

Quanto à RTP/África, não se descortina qual seja a sua razão de ser como canal luso-africano, e é legítimo temer que possa ser interpretada como um projecto paternalista, quiçá neocolonial, por melhores que sejam as intenções originais. Melhor seria que evoluísse para um projecto federado, como se tentou há uma década, englobando as televisões de referência de todos os países de Língua Portuguesa, sem marginalizar o Brasil. Mas então seria mais correcto que o canal se organizasse como um serviço de cooperação internacional lusófona, com capitais próprios e apoios oficiais dos vários países, saindo do âmbito do serviço público nacional.

Finalmente, é preciso reflectir sobre a vantagem de se manterem como canais autónomos a RTP/Madeira e a RTP/Açores, que perdem progressivamente o seu público, à medida que nas Ilhas passam a ser vistos os canais nacionais e toda a panóplia do cabo. Na Madeira, a maior parte das casas já recebe os canais do cabo ou do satélite (29.334 lares ligados ao cabo e 13.500 ao sistema MMDS), além da rede terrestre que difunde o Canal 1 e o canal regional. O mesmo caminho está a ser seguido nos Açores, embora a ritmo menos agressivo. No próximo ano de 2002 os dois arquipélagos, como todo o país, passarão a ser cobertos pela Plataforma Televisiva Digital Portuguesa (PTDP), que disponibilizará os canais nacionais da RTP1 e 2, SIC e TVI (grátis) e outros vinte da rede do cabo, incluindo uma frequência destinada à difusão nacional dos canais regionais dos Açores e da Madeira.

Neste contexto, há que repensar toda a filosofia dos canais regionais, cuja estrutura isolada reflecte ainda os condicionalismos de uma época tecnologicamente ultrapassada. Hoje os canais ditos regionais pouco mais fazem do que repetir, com novo alinhamento, os programas requentados que o público viu anteriormente no Canal1, ao passo que a produção local não preenche senão uma pequena parte da grelha. Ora a produção local terá de ser estimulada, para maior valorização das regiões. Aos 95 profissionais da RTP/M e aos 134 da RTP/A, aliás quadros da RTP nacional, devem ser dadas condições técnicas e financeiras para produzir mais e melhor.

Resta saber se essa produção de melhor qualidade deverá ficar confinada a um canal autónomo (cuja qualidade não tem sido muito exigente) ou se, pelo contrário, não deverá ser mais valorizada e mais vista através de “janelas regionais” (tão alargadas quanto necessário) que seriam abertas nos próprios canais nacionais difundidos na região. Mas há mais : esta dinâmica conduziria naturalmente a uma grande participação das Ilhas nas grelhas de difusão nacional da RTP1 e 2 e da RTPi, rompendo a insularidade e contribuindo para a promoção dos arquipélagos no todo nacional e nas comunidades de emigração. Só assim se justificaria plenamente os três milhões de contos que a RTP gasta por ano em despesas correntes dos canais insulares (sem contar os programas fornecidos).

O Sindicato dos Jornalistas entende que não basta consensualizar o Serviço Público como objectivo patriótico, mas avança propostas para uma estrutura integrada de produção/emissão. É preciso que a RTP seja capaz de estimular núcleos criativos de produção de conteúdos, que constituam uma verdadeira “escola” de Serviço Público. A produção interna deve ser privilegiada e cabe-lhe o controlo de qualidade, dos preços e dos prazos de produção, através da FoCo ou de outra forma. Mas o sistema não pode fechar-se dentro de si mesmo, antes deve dialogar com os produtores externos, cuja criatividade enriquecerá a diversidade estética e o pluralismo democrático. Impõe-se igualmente melhorar as condições técnicas de emissão, na medida do possível. Há anos que a emissão do Serviço Público é prejudicada relativamente às privadas,no aspecto técnico, porque a RTP1 tem sido mantida nos velhos emissores VHF, ao passo que a SIC desde sempre foi privilegiada com modernos emissores UHF disponibilizados pela TDP (empresa de capital público constituída pelo governo em 1992 com a rede de emissão retirada à RTP ). Não basta denunciar o prejuízo irreparável causado à RTP – o mais importante agora é acelerar a instalação do digital terrestre que, de 2002 a 2005, anulará progressivamente a desvantagem técnica da RTP.

5. Sobre o modelo de gestão

A gestão da estrutura empresarial que suporta o Serviço Público deve apontar prioritariamente para um projecto de desenvolvimento cultural (como objectivo estratégico) cabendo-lhe administrar um rigoroso projecto financeiro (que é um meio necessário ). A ordem dos factores não pode ser invertida. A pretexto de resolver o problema financeiro, não se pode sacrificar o objectivo do Serviço Público, sujeitando-se a RTP – como acontece agora – a modelos economicistas, aliás desenhados por um grupo técnico do Ministério das Finanças, de que provém a actual presidência da empresa.

Por outro lado, toda a concepção prática da emissão, a produção e o alinhamento da grelha serão da competência de um Director-Geral com perfil adequado, que articule as direcções dos canais. Cada direcção manterá, por sua vez, relativa autonomia de gestão, sujeita obviamente ao respectivo envelope orçamental e dentro da mesma filosofia de conceito.

Para que o Serviço Público seja credível, deve estar acima de toda a suspeita . Só pode ser sustentado pelo Estado, mas não pode ser um projecto estatizado e, muito menos, partidarizado. De nada serve que esteja isento de sujeições publicitárias, se não for livre de manipulações políticas. No actual contexto político, esta credibilidade continua afectada pelo processo de nomeação dos administradores, que é de exclusiva responsabilidade governamental, para não falar das jogadas “lobistas”.

Numa democracia estabilizada é normal que os gestores da televisão pública sejam nomeados pelo Governo eleito, sendo este julgado pelos resultados da sua decisão. Infelizmente, o processo não funciona bem em Portugal: na nossa memória colectiva, a RTP continua afectada por um pecado original. Quem conhece a situação, por estranho que pareça, sabe que este Governo tem sido incapaz de impor directamente critérios de informação e de programação – e, não obstante, é público e sabido que a RTP arrasta consigo uma imagem de instrumentalização política e que os seus gestores continuam a ser vistos como “comissários governamentais”. Já é tempo de sacudir este anátema – é inadiável introduzir um novo processo de relacionamento institucional entre o Governo e a estação, que rompa o muro da desconfiança e credibilize a direcção da empresa.

O Sindicato dos Jornalistas sustenta que a importância do cargo de presidente do Conselho de Administração da RTP aconselha que a sua designação e investidura passe directamente pela Assembleia da República, após apreciação do seu perfil, do seu programa e da sua equipa. Nada impede que esta apreciação seja mediada pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, mas deveria ser caucionada por uma maioria parlamentar qualificada. O mandato teria a duração de quatro anos e não seria coincidente com o período da legislatura, só podendo ser interrompido por desconfiança parlamentar. Mas esta institucionalização não basta: é imprescindível que o Serviço Público da democracia seja defendido por um sistema de “regulação” eficaz e se apoie na participação democrática dos trabalhadores. O sistema poderá ser aperfeiçoado, mas para já cumpram-se as leis que exigem a representação dos trabalhadores nos órgãos de gestão e, ainda, a auscultação da Comissão de Trabalhadores e dos Conselhos de Redacção. E respeite-se o Conselho de Opinião, que assume a representação da sociedade civil, revendo-se porventura as suas competências e as formas de funcionamento.

6. Sobre as responsabilidades dos profissionais

Há uma revolução a fazer : é preciso criar uma cultura de Serviço Público que envolva os profissionais, especialmente os criativos (jornalistas, realizadores, produtores, autores, guionistas). Na RTP prevalecem estados de alma que numa empresa comercial estariam adequados, mas contradizem o espírito do Serviço Público. Certas posturas profissionais terão de ser alteradas, tanto ao nível da deontologia como ao nível epistemológico.

Há uma questão política especialmente melindrosa: o Serviço Público não pode fazer-se sem o Estado nem contra o Estado, mas não pode traduzir-se numa Televisão estatista nem governamentalizada. Só um projecto cívico que seja coerente e credível poderá mobilizar o empenhamento dos profissionais, numa dinâmica de enquadramento que não pode dispensar a sua participação no debate das ideias e na estratégia de acção.

O Sindicato dos Jornalistas adverte que não haverá Serviço Público sem jornalismo livre e responsável, mas recorda também que a função crítica não é a única dimensão do jornalismo e que a credibilidade da Informação assenta na responsabilidade cívica e não na mitologia do “contra-poder” nem na falácia do “quarto poder”. Por outro lado, o SJ conhece o ambiente que se vive na televisão pública e sente que o alheamento de muitos profissionais é indissociável das contradições e hesitações dos responsáveis políticos, do aventureirismo de certos projectos com pés de barro, da impreparação e arrogância de muitos gestores, da falta de respeito pelos trabalhadores da casa. E acrescente-se ainda o sentimento de abandono por parte do accionista, o Estado, que não paga a tempo as indemnizações contratadas e todos os anos muda a direcção da empresa. ( Cinco administrações nos últimos cinco anos, num total de vinte e seis administrações nos vinte e sete anos após 1974 – é obra! ) Ora este ambiente pode mudar da noite para o dia , se houver vontade política. O SJ entende que a mãe de todas as prioridades é a definição do projecto, e que, antes disso, não faz qualquer sentido especular sobre se os actuais quadros (1869 profissionais da RTP e 268 da FoCo) estão ou não inflacionados. Se há sacrifícios a pedir a toda a gente, as medidas difíceis têm de ser tomadas com dignidade e sem provocar uma sangria de competências (que já começou). Corte-se no supérfluo, no luxo e na ostentação e não nos direitos dos trabalhadores, sujeitos a leques de remuneração que chegam a atingir discrepâncias de 10 para 1. E finalmente é legítimo acreditar que o “amor à camisola” ajude os profissionais da RTP a empenharem-se num projecto honesto e participado.

7. Apelo ao debate público

O Sindicato dos Jornalistas tem plena consciência das dificuldades desta proposta global, mas não tem medo que ela seja apontada de irrealismo : mais irrealista seria a insistência nas mesmas fórmulas queimadas destes vinte e sete anos, erros sobre erros, que levaram a empresa à ruína. Esta proposta não pretende esgotar o problema, mas pelo menos apresenta uma reflexão articulada, não apenas teórica nem meramente pragmática, a desafiar o debate público. Se desta discussão puder surgir um consenso mais alargado, teremos contribuído para salvar o Serviço Público. Mas seria erróneo esperar um consenso total sobre matéria tão complexa. Seria mesmo indesejável. Restará sempre uma grande margem de diferença, que será o terreno da decisão política, da criatividade e da surpresa.

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