O Conselho Deontológico dos Jornalistas Portugueses aproveita a oportunidade para alertar os jornalistas em geral para o elevado risco de eventuais menções a lugares e marcas de bens e serviços serem facilmente percebidos pelos restantes utilizadores das redes sociais, bem como pelo público em geral, como mensagens promocionais ou publicitárias, comprometendo o seu estatuto de independência face a interesses comerciais.
Conselho Deontológico
Queixa nº 27/Q/2018
Assunto
Queixa contra a jornalista Rita Marrafa de Carvalho apresentada pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, com a imputação de atos suscetíveis de serem considerados publicidade, bem como de atos xenófobos e discriminatórios.
Da queixa
1. Em 13 de março do corrente ano, recebeu o Conselho Deontológico uma denúncia do advogado Ricardo Serrano Vieira imputando à jornalista Rita Marrafa de Carvalho a prática de atos publicitários, em violação do disposto no Art.º 3.º (números 1 a 4) e 14.º (n.º 1, al. c) do Estatuto do Jornalista e do n.º 11 do Código Deontológico dos
Jornalistas, bem como a difusão de mensagens de cariz xenófobo e discriminatório, em ofensa ao disposto na alínea
e) do n.º 2 do já referido Art.º 14.º do Estatuto e ao n.º 9 do Código.
2. Tais atos teriam sido praticados através de contas pessoais da denunciada nas redes sociais Facebook, Instagram e Twitter, de menções, na imprensa, à sua pessoa, relacionadas com bens e serviços, bem como de uma entrevista, para o que juntou um conjunto de 14 ligações eletrónicas e 39 impressões de várias inserções nas referidas
redes e de notícias em publicações em linha.
3. No essencial, as provas propostas indicam que as referidas ligações, por iniciativa da própria jornalista Rita Marrafa de Carvalho ou de terceiros – mormente pessoas, singulares ou coletivas, titulares ou responsáveis de estabelecimentos e marcas neles mencionados – , contêm imagens, textos e “#hashtags” com expressa menção a
produtos ou serviços.
4. É o caso, nomeadamente, do salão Manubela Cabeleireiros, do produto para dietas PronoKal, da médica endocrinologista Cristina Costa Santos, da nutricionista Elza Tristão, das esteticistas ou maquilhadoras Diana Ribeiro Lashes, Sandra Ramos e Susana Márcia, da gelataria Nannarella, da marca de roupas, acessórios e bijuteria
Bimba Y Lola e da organizadora de eventos e gastronomia Travel & Flavours, e da loja de “lingerie funcional” Esbelt Brazilian Bodywear.
5. Analisando-se os elementos fornecidos, verifica-se que em pelo menos dez dos “posts” em redes sociais apresentam menções suscetíveis de serem consideradas valorativas ou mesmo elogiosas, bem como recursos de subtexto que, voluntária ou involuntariamente, podem levar a reações e atitudes dos seguidores favoráveis aos
bens e serviços neles referidos.
6. De entre essa amostra, releva-se, a título exemplificativo, (i) uma mensagem no Instagram, na qual surge uma foto de uma mão ao volante de um automóvel e exibindo um anel num dedo acompanhada do texto “Sair da @rtp ainda com o sol no céu (coisa rara) e um grito por verão no dedo”; e (ii) outra com imagens em referência a uma empresa de eventos e gastronomia, acompanhada do texto: “Doces presentes. Sem açúcar. Sem glúten. Farinhas boas. Obrigada, @travelandflavours”.
7. Por outro lado, assume particular destaque o teor de uma entrevista concedida pela denunciada à revista “Lux Woman” (edição em linha), publicada em 19 de março de 2015, na qual faz a menção expressa e elogiosa à marca de um método de tratamento dietético, bem como a utilização, pela PronoKal, na sua página oficial no Facebook
(23/3/2015), da ligação eletrónica da referida entrevista, sinalizando que a entrevistada “enfatiza” o seu método.
Procedimentos
8. Face aos factos descritos, decidiu o Conselho Deontológico abrir um procedimento, enviando à jornalista um primeiro questionário sobre as matérias que entendeu pertinentes, ao qual se seguiu um segundo, com o intuito de esclarecer respostas.
9. Tendo sido insuficiente o esclarecimento sobre pontos centrais a esclarecer, quanto à referência à marca PronoKal na entrevista à “Lux Woman”, procedeu-se à inquirição, também escrita, da jornalista autora do referido trabalho.
10. Procedeu-se igualmente a diligências complementares, designadamente a pesquisa de referências em fontes abertas – redes sociais e sítios eletrónicos.
Análise
11. Respondendo ao CD, veio a jornalista Rita Marrafa de Carvalho dizer, em síntese, que:
a) Não recebeu o que quer que fosse – “obviamente que não”, enfatiza – das pessoas singulares e coletivas fornecedoras de bens e serviços referidas na queixa, acrescentando que algumas das profissionais indicadas são amigas ou prestadoras de serviços à RTP e que é frequente fazer fotografias com elas e partilhar na rede;
b) As referências a locais, nomeadamente bares e restaurantes, surgem por vezes automaticamente em publicações no Instagram, mas que, de qualquer modo, outras inseridas não significam publicidade, porque não está em serviço, em prática jornalística, já que é a vida fora dos ecrãs;
c) A partilha de imagens como a do anel oferecido pelo namorado, inserindo a “hashtag” da marca é uma prática comum entre os utilizadores da rede Instagram, no quadro da partilha global, pois as redes sociais são partilha de informação, conhecimento, plataforma de divulgação;
d) O denunciante mantém com a jornalista um conflito pessoal, relacionado com a atividade de advogado e também devido a opiniões expressas por ela no âmbito da sua atividade cívica na plataforma Capazes.
12. Analisando, por amostragem, as contas – abertas – da jornalista nas várias redes sociais, o CD verificou ser efetivamente frequente, mesmo após a queixa e a abertura do presente procedimento, a sua prática de partilha e divulgação, com a inserção de elementos suscetíveis de serem interpretados como mensagens promocionais ou
publicitárias.
13. Tais “partilhas” podem ser percebidas pelo público como práticas de “influência digital” – um segmento do marketing e publicidade em fase muito crescente e – traduzidas na divulgação de mensagens aparentemente banais do quotidiano (“a vida em modo divertido”, citando um especialista de marketing…) por personagens mais ou menos conhecidas no espaço público, embora não estejam expressamente identificadas como publicidade.
14. Embora a jornalista invoque a esfera de cidadã “fora do ecrã” e, por vezes, a sua condição de também cantora, sustentando que, hoje em dia, as pessoas distinguem os papéis e que a colocação de “hashatags” que permitem ver as fotos partilhadas por utilizadores de todo o mundo é uma prática comum, o CD sublinha:
a) A divulgação, por qualquer meio, de marcas, bens e serviços, mesmo não remunerada, é uma atividade de publicidade legalmente vedada a jornalistas;
b) Mesmo na esfera da sua vida privada, os jornalistas não devem criar condições para que os utilizadores das redes e o público em geral suspeitem de obtenção de vantagens materiais ilícitas.
15. Quanto à entrevista à revista “Lux Woman”, a jornalista respondeu que a concedeu porque a referida publicação quis fazer uma entrevista sobre o que considerava serem boas práticas de saúde, beleza e forma física, mas escusou-se referir qualquer marca que seja para além do nome da médica.
16. No entanto, na entrevista publicada, afirma taxativamente: “O método que sigo é o que resulta comigo, que é o método PronoKal (…). Sei que existem outros métodos de dieta proteica, mas, com a endocrinologista e a nutricionista que me acompanham, percebi, pelos resultados e pelas análises, que era aqui que me sentia bem”.
17. Convidada a esclarecer este ponto, Rita Marrafa de Carvalho veio dizer que não se recorda de ter referido o método especificamente e que, se o fez, foi inocentemente e sem um cariz publicitário.
18. Solicitada pelo CD a esclarecer as condições de elaboração do texto, veio a autora do trabalho, jornalista Leonor Antolin Teixeira, dizer que a entrevista fora proposta pela própria Rita Marrafa de Carvalho e que, nela, a entrevistada citou explicitamente o “método PronoKLal”, realçando o facto de ter falado nele por sua livre e inteira vontade e acrescentando ser pouco habitual as entrevistadas mencionarem marcas.
19. Nas respostas ao CD, a denunciada assegurou não ter recebido qualquer contrapartida direta ou indireta pelas menções a marcas, bens e serviços, incluindo a PronoKal, esclarecendo, no entanto, que a única relação com a marca foi a contratação para um miniconcerto, realizado em novembro de 2015.
20. Compulsando-se os elementos constantes na queixa, relativos às referências à PronoKal, e os entretantos obtidos através das pesquisas em fontes abertas, verifica-se ser relativamente prolongada, naquele ano, a “presença” da jornalista na página oficial da empresa no Facebook, sítio em linha e canal no YouTube.
21. Com efeito, a PronoKal não só destacou, nas suas páginas no Facebook e na Internet (23/03), a entrevista da jornalista à revista “Lux Woman” (19/03), mas também já tinha partilhado (19/02) um “post” seu sobre uma consulta de endocrinologia, retomando o “seguimento” com a remissão (11/07) para uma entrevista à revista “VIP”, na qual revela ter emagrecido 13 Kg, e concluindo com referências, no sítio oficial da empresa (09/11) e no canal no YouTube (17/12) à participação da jornalista- cantora na inauguração de um centro da marca.
22. Trata-se de uma relação pouco ou nada habitual, com os indícios de uma estratégia de comunicação sofisticada envolvendo a participação voluntária ou involuntária da jornalista, da qual pode resultar a suspeita de que obteve vantagens materiais, quanto mais não seja na contratação para o referido miniconcerto.
Deliberação
23. Ponderada a matéria analisada sobre a participação da jornalista Rita Marrafa de Carvalho nas redes sociais, em particular no que tange às mensagens contendo menções a marcas, bens e serviços, o Conselho Deontológico considera que várias delas são suscetíveis de serem interpretadas pelo público como mensagens publicitárias.
24. Aceitando que a denunciada considera tal prática como habitual e comum, entre o universo de utilizadores das redes, e admitindo que não tem obtido vantagens ilícitas na divulgação desse tipo de mensagens, ou que tão-pouco aspira ao estatuto de “influenciadora digital”, o CD exorta-a a cessá-la de imediato.
25. O Conselho aproveita a oportunidade para alertar os jornalistas em geral para o elevado risco de eventuais menções a lugares e marcas de bens e serviços serem facilmente percebidos pelos restantes utilizadores das redes sociais, bem como pelo público em geral, como mensagens promocionais ou publicitárias, comprometendo o
seu estatuto de independência face a interesses comerciais.
26. O Conselho considera ter-se verificado, no decurso de 2015, uma coincidência excessiva entre o seguimento sistemático, por parte da estrutura de comunicação da PronoKal, do conteúdo dos “posts” da denunciada nas redes sociais e das entrevistas concedidas, a menção específica à marca numa delas e a contratação para um
“miniconcerto”.
27. Concretamente no caso da entrevista concedida à revista “Lux Woman”, verifica-se um forçamento da menção ao método PronoKal, com a agravante de ter sido proposta pela própria entrevistada.
28. Ao conceder a entrevista nos termos em que concedeu e ao aceitar ser contratada para cantar numa iniciativa promocional – a inauguração de um centro e lançamento de uma campanha – da PronoKal, a jornalista colocou-se numa situação que compromete a sua independência face a interesses comerciais, em violação do Estatuto e do Código
Deontológico da sua profissão principal – o jornalismo –, que é aquela que mais a torna conhecida perante o público.
29. Admitindo que terá sido levada à prática descrita pela convicção de que não violaria nenhuma norma de conduta da profissão e até de que se trataria de uma prática aceitável socialmente, desde logo nos meios em que se move, o CD exorta a jornalista a não repeti-la.
Lisboa, 17 de outubro 2018
Pelo Conselho Deontológico
do Sindicato dos Jornalistas
São José Almeida
(Presidente)