CD considera improcedente queixa da Abraço contra Dulce Salzedas

O Conselho Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas considerou improcedente a queixa da Abraço contra a reportagem HIV Positivo + de Dulce Salzedas e Paulo Cepa, transmitida pela SIC a 17 de Setembro de 1998. Ao contrário dos queixosos, o CD concluiu que a reportagem contestada é um “bom exemplo do esforço, discreto mas permanente, de dois jornalistas contarem histórias «no fio da navalha» sem resvalarem no sensacionalismo, na morbidez, na pieguice ou na devassa do que há de mais íntimo nos que sofrem”.

A propósito, o CD divulgou o comunicado que a seguir se transcreve na íntegra.

Queixa de três dirigentes da Abraço, Associação de Apoio a Pessoas com VIH/SIDA, contra a reportagem HIV Positivo + de Dulce Salzedas e Paulo Cepa, transmitida pela SIC a 17 de Setembro de 1998.

Margarida Martins, Maria José Campos e Pedro Silvério Marques, dirigentes da Associação Abraço, em queixa enviada a este Conselho Deontológico, acusam a reportagem de cuja autoria apenas identificam a jornalista Dulce Salzedas, conquanto a ficha técnica mencione a co-autoria de Paulo Cepa – de ter entrevistado três crianças seronegativas do Funchal, cuja mãe faleceu de SIDA, faltando à verdade sobre o apoio social de que as crianças beneficiavam, encenando falsas situações do seu quotidiano, desrespeitando e explorando os seus sentimentos íntimos e forçando-as a reviver e a relatar, para as câmaras, os momentos particularmente duros e dolorosos da morte da mãe.

O fragmento criticado na reportagem são cerca de dez minutos em 45 de um trabalho onde, em diversos pontos do país, os jornalistas da SIC fazem o levantamento de problemas vividos por crianças com SIDA e respectivos pais ou educadores. Ao longo de todo o trabalho é evidente o cuidado de jamais a câmara identificar crianças doentes ou seus irmãos, mostrando fragmentos dos rostos mas de modo a que não possa ser reconstituído o todo. Por outro lado, em toda a reportagem perpassa uma mensagem nem derrotista nem piegas, antes trazendo ao espectador momentos e situações de luta – desesperada, mas luta! – contra a doença ou, no mínimo, para minorar o sofrimento das crianças atingidas.

Quando a reportagem se debruça sobre as três crianças da Calheta (Madeira), estas são completamente identificadas pelo rosto, pelo nome, pela ligação familiar e pelo meio em que vivem. Nem faria sentido que o não fossem: essas crianças não estão infectadas, são sadias e só aparecem nesta reportagem por duas razões:

– perderam a mãe, vítima de SIDA; e,

– beneficiam da coragem reactiva da irmã mais velha, apresentada na reportagem como uma heroína de 12/13 anos, que dedica o seu quotidiano de criança a cumprir um desejo da mãe falecida de criar os irmãos junto dela e de não cair nas armadilhas da doença.

É possível que os dirigentes da Abraço entendam que Dulce Salzedas e Paulo Cepa não têm razão em ver aquela menina como uma heroína. É possível que os dirigentes da Abraço entendam que não passa de uma criança vulgar e que os heróis são as instituições, as associações e outros adultos avulsos que se preocupam com ela, por militância ou por dever funcional. Ao Conselho Deontológico é que repugnaria atrever-se a tentar proibir jornalistas de verem o belo onde outros só lobrigam normalidade. Pelo contrário, o Conselho Deontológico sente-se gratificado por haver jornalistas que não hesitam em pôr uma pincelada de esperança no que relatam.

O Conselho Deontológico entende que a queixa dos dirigentes da Abraço não tem qualquer fundamento nem teria substância se, colateralmente, aquela organização não estivesse envolvida numa polémica que nada tem a ver directamente com as crianças da Madeira mas que gravita, através de adultos, em torno delas. O Conselho Deontológico não pode aceitar que essas crianças, o seu sofrimento e o seu heroísmo possam ser amalgamados numa arma de arremesso ao serviço de interesses que nada têm a ver com a ética jornalística ou os direitos das crianças.

É norma deste Conselho Deontológico não divulgar, para além das partes envolvidas ou dos tribunais que o solicitem as suas posições sobre queixas que lhe tenham sido apresentadas. No entanto, o presente caso, antes mesmo de chegar ao Conselho Deontológico, já foi objecto de tomadas públicas de posição, denegridoras do bom nome e da ética profissional dos jornalistas visados. Por isso, com a mesma tranquilidade com que, noutras ocasiões, criticou publicamente jornalistas, entende o Conselho Deontológico ser seu dever tornar público o que pensa da reportagem de Dulce Salzedas e Paulo Cepa.

Muito ao contrário do entendimento dos queixosos, a reportagem contestada é um bom exemplo do esforço, discreto mas permanente, de dois jornalistas contarem histórias «no fio da navalha» sem resvalarem no sensacionalismo, na morbidez, na pieguice ou na devassa do que há de mais íntimo nos que sofrem. Pelo contrário, a reportagem de Dulce Salzedas e Paulo Cepa transmite uma quase imperceptível exaltação dos que reagem ao infortúnio da doença. A reportagem em causa não será perfeita. Isso só significa que é possível fazer melhor. O que é estimulante e promissor.

Lisboa, 26 de Novembro de 1998

O Conselho Deontológico

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