AACS considera comportamento do “Semanário” muito grave

A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considera “extrema e inusitadamente grave” o comportamento do “Semanário”, que publicou e desmentiu no mesmo dia uma manchete afirmando que a ministra da Justiça recebera da PJ uma lista de suspeitos no escândalo da Casa Pia onde constariam os nomes de membros do Governo.

“Sem circunstâncias atenuantes” é a expressão usada nas conclusões da deliberação da AACS, que analisa exaustivamente o caso e condena em absoluto o procedimento ético-legal do jornal.

A AACS afirma que a direcção do jornal não soube dar “uma explicação convicente” para o erro e acrescenta não ter encontrado essa explicação no processo que abriu.

Em deliberação aprovada por unanimidade, a 19 de Março, este organismo recomendou ao “Semanário” que, “no futuro, cumpra escrupulosamente o normativo ético/legal a que está vinculado quanto ao rigor da informação, designadamente no uso de adequados mecanismos de investigação, escolha das fontes, cruzamento de informação, princípio do contraditório e ponderação da seriedade da informação disponível para publicação”.

DELIBERAÇÃO SOBRE

A CURIALIDADE ÉTICO/LEGAL DE PEÇAS PUBLICADAS NO “SEMANÁRIO” DE 14 DE FEVEREIRO DE 2003

(Aprovada em reunião plenária de 19 de Março de 2003)

I. OS FACTOS

I.1. A 19 de Fevereiro de 2003 a Alta Autoridade para a Comunicação Social deliberou abrir um processo acerca da curialidade ético/legal de peças divulgadas nas páginas 1 e 11 do “Semanário” de 14 de Fevereiro de 2003 sobre hipotética intervenção governamental na investigação que actualmente decorre relativamente a alegados casos de pedofilia em que as vítimas seriam alunos ou ex-alunos da Casa Pia.

I.2. A peça da primeira página cobria quase toda a capa do periódico, sendo o seguinte o seu título principal: “Cardona pediu lista de pedófilos investigados à Judiciária”. Ao lado deste título surge uma foto, em grande plano, da Ministra da Justiça. Na mesma peça, mais abaixo, sob um novo título, “Paulo Portas não está na lista”, pode ler-se:

“Celeste Cardona já tem a lista de investigados pela Judiciária no caso de pedofilia no âmbito da investigação da Casa Pia. Segundo fontes governamentais, a lista entregue por Salvado a Celeste Cardona inclui dois membros do Governo e teria já provocado em Conselho de Ministros tensões com Celeste Cardona. Na presidência do Conselho de Ministros, Celeste Cardona, que não tem conseguido intervir no debate sobre a Justiça, polarizado entre o Director da PJ, Adelino Salvado, e seus apoiantes, e Maria José Morgado e os seus apoiantes do Ministério Público, estaria a prazo e Morais Sarmento pretenderia mesmo a sua demissão. A lista dos investigados da PJ estaria também a criar algum espaço para que os ministros do CDS recuperassem algum protagonismo no Governo. Para além de membros no Governo, estão na lista de Celeste Cardona alguns artistas e desportistas com grande destaque público.”

I.3. Na página 11 é desenvolvida, em peça que quase a ocupa integralmente, a notícia apresentada na capa do “Semanário”. O título deste artigo é: “Morais Sarmento quer demissão da Ministra da Justiça. Polícia Judiciária deu lista de pedófilos a Celeste Cardona”. Os primeiros períodos deste texto, que, de resto, em corpo de saliência, a resumem razoavelmente, afirmam isto:

A lista na posse de Celeste Cardona é uma espécie de bomba-relógio, podendo funcionar como arma de arremesso político no interior do Governo e fora dele. O SEMANÁRIO sabe que da lista constam os nomes de dois governantes, um deles Morais Sarmento, que pode estar a ser vítima de uma trama brutal, urdida por sectores próximos de Portas. Entretanto, em Conselho de Ministros, Sarmento pediu a cabeça de Cardona”.

I.4. No próprio dia 14 de Fevereiro o “Semanário” fez publicar, sobre o assunto, um desmentido que, assinado pelo seu Director, tinha este teor:

“Relativamente à notícia publicada na edição de hoje, no jornal “Semanário”, a direcção de informação do jornal confirma a informação de que fontes do Ministério da Justiça, divulgaram informações sobre pessoas alegadamente envolvidas na rede de pedófilia em investigação.

A direcção de informação do Semanário desmente totalmente ter conhecimento ou de ter recebido informação sobre a existência de uma lista ou nomes de pessoas concretas. Pela incorrecção da notícia hoje publicada, impunha-se este desmentido imediato, lamentando as erradas referências constantes da mesma”.

O desmentido acima transcrito suscitou um despacho da Lusa com a data de 03.02.14 e a hora de emissão de 14H41.

No mesmo dia foi igualmente divulgada pelo Gabinete da Ministra da Justiça uma Nota à Comunicação Social que dizia isto:

“NOTA À COMUNICAÇÃO SOCIAL

Atendendo ao teor de uma notícia divulgada por um semanário de que a ministra da Justiça teria solicitado à Polícia Judiciária informações relativas às investigações em curso do chamado “Caso Casa Pia”, o gabinete da ministra da Justiça informa que:

É totalmente falso que a ministra da Justiça tenha solicitado, ou recebido, quaisquer elementos referentes à investigação em curso.

Recorda-se que é o Ministério Público que detém a direcção e o controlo efectivo desta investigação e do respectivo processo.

O Ministério da Justiça reafirma o seu respeito integral pelo princípio da separação de poderes, competindo-lhe apenas colocar à disposição das autoridades judiciárias os meios necessários à investigação criminal.

Este gabinete lamenta e deplora que sobre matérias desta importância sejam publicadas notícias sem qualquer fundamento.”

Esta Nota foi publicada no “Semanário” de 21 de Fevereiro de 2003, sem qualquer comentário ou explicação que relacione o respectivo texto com o periódico, isto é, sem explicitar a conexão da Nota com as suas próprias notícias de 14 de Fevereiro.

I.5. Nessa mesma edição de 21 de Fevereiro de 2003 do “Semanário”, na página 9, no final de um artigo de fundo assinado pelo Director, surge esta adenda:

“Na sequência das notícias da semana passada, e uma vez que o Governo e a Alta Autoridade decidiram levar a questão para o foro judicial, é nessa instância que iremos responder. Por respeito às instituições e aos intervenientes.”

Trata-se da única referência que o periódico faz ao caso nas suas paginas.

1.6. Instado a sustentar a curialidade ético/legal das peças em análise, o Director do “Semanário” enviou à AACS a seguinte explicação:

“Não foi com surpresa que recebi a V. notificação of. nº 386/AACS/2003 sobre o assunto em epígrafe. Lamento mesmo que uma notícia que visava denunciar uma situação, que as nossas fontes, aliás idóneas e nas quais confiamos, garantem ser verdadeira e confirmam, mesmo depois do nosso desmentido, que ofendia o estado de direito e que politicamente era relevante, se tenha transformado numa fórmula de julgamento da comunicação social e do comportamento ético e legal do Semanário, quando todos sabemos que, o resto da comunicação social, apenas aproveitou a crítica ao Semanário, para valorizar a informação sórdida do alegado envolvimento de um ministro em actividades pedófilas. Ou seja, os outros ao criticarem o Semanário quiseram apenas divulgar uma notícia. Há aliás uma intencional manipulação do nosso desmentido por parte dos outros jornais.

O Semanário não desmentiu a sua manchete, que é verdadeira, conforme decorre do comunicado distribuído, e que segue em anexo. No fim-de-semana de 15 e 16 de Fevereiro, há, contudo, três jornais que dizem que o director do semanário desmente a sua própria manchete, o que é falso e viola ética e legalmente a lei de imprensa, dado que esses jornais estão conscientes que estão a escrever informações que são falsas. Convinha aliás que a AACS agisse, neste particular.

Porém, a repercussão que a notícia teve foi muito para além do que o Semanário pretendeu, do que era alegado.

É de referir que o Semanário tem mais informações sobre o “dossier da pedofilia”, mas que apenas publicou aquelas que pode confirmar, com pelo menos duas ou mais testemunhas idóneas. É essa, aliás, a razão porque não publicamos as entrevistas das alegadas vítimas de pedofilia que foram divulgadas na TVI, e ás quais tivemos acesso em primeira mão.

Não pode ser o jornal condenado por publicar notícias que considerava verdadeiras, com base em fontes que reputa credíveis.

Em resumo: houve intencionalmente uma transformação quer do conteúdo das notícias publicadas, quer depois do comunicado, por parte de quem estava interessado em denegrir o Semanário.

Sendo a notícia legítima e conjugando-a com o desmentido, no nosso comunicado (que, obviamente, não se refere à manchete do jornal, mas, apenas, à lista de “nomes concretos”), não houve qualquer violação ética ou legal.

Certo que este processo será arquivado, pois não existe qualquer razão para que ele prossiga, subscrevemo-nos.”

II. A COMPETÊNCIA

A Alta Autoridade para a Comunicação Social é competente para apreciar o caso e sobre ele deliberar, atento o disposto, desde logo no nº 1 do artigo 39º da Constituição , e ainda, no patamar ordinário da legislação, o estabelecido nas alíneas a), b) e h) do artigo 3º e n) do artigo 4º da Lei nº 43/98, de 6 de Agosto.

III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO ÉTICO-LEGAL DAS PEÇAS SINDICADAS

III.1. Antes do mais frise-se que o assunto a que se reportam as peças em observação se revestia de uma excepcional delicadeza, verificação que deveria pois ter pressuposto um particular cuidado na investigação, recolha, confirmação, preparação, redacção e publicação das notícias em apreço. Não que todas as peças jornalísticas não devam suscitar rigor, objectividade e profissionalismo. Decerto que sim. Mas resulta inegável que há matérias jornalísticas de especial melindre, por exemplo de ordem política (é o caso) e quando afectam direitos de personalidade de pessoas identificadas (também é o caso) e que tais temáticas têm de merecer, inevitavelmente, uma cautela e um rigor acrescidos, considerados os efeitos nocivos que podem nessa área derivar de uma notícia grosseiramente errada, leviana ou insuficientemente estruturada e fundamentada.

III.1.1. Ora sobre o que é que disserta o “Semanário” na circunstância em exame, o que é que ele diz , sinteticamente? Diz que,

– A Ministra da Justiça teria pedido à Polícia Judiciária, e obtido, informação relacionada com as investigações em curso referentes a alegados crimes de pedofilia cometidos com alunos e ex-alunos da Casa Pia, o que, a confirmar-se, seria ilegal, dado que esses elementos estão em segredo de justiça;

– A lista hipoteticamente recebida pela Ministra da Justiça incluiria dois membros do actual Governo, um dos quais nomeado, os quais estariam pois indiciados por crimes de pedofilia;

– Nessa lista não constaria o nome de um outro governante, o que o periódico enfatiza, identificando-o, acrescentando mesmo que o objectivo do pedido da Ministra seria o de confirmar se esse ministro estaria ou não entre os investigados pelos alegados crimes de pedofilia;

– O caso teria tido grande repercussão no Conselho de Ministros, onde teria dado azo a vivas discussões, com um ministro a pedir a demissão de outro elemento do Ministério, no qual estaria instalado um profundo mal estar devido a este problema e às suas repercussões.

III.1.2. Não vale a pena insistir ou sublinhar excessivamente quão graves seriam estes factos, se adregassem um mínimo de fidedignidade. Provocariam uma incontornável crise política de dimensões consideráveis, com a provável queda do próprio Governo. Além de que, e é um aspecto que não pode deixar de se relevar, representaria, para várias pessoas envolvidas, graves suspeitas de comissão de crimes de vária natureza, com evidente lesão profundíssima da sua imagem, pessoal e política. É difícil de imaginar um acervo informativo mais alarmista no cenário mediático português, um feixe noticioso que pudesse provocar maiores instabilidade, escândalo e alarme público, aliás legítimo.

III.1.3. De nenhum modo se está a afirmar, ou sequer a presumir, que, tendo em conta a extrema gravidade dos factos anunciados pelas peças do “Semanário”, os “media” se deveriam sem mais ter abstido de os referir, ou, a montante, sequer de os investigar. Muito pelo contrário. A opinião pública tem o direito de ser informada de todas as situações de invocadas irregularidades, ilicitudes ou ilegalidades cometidas pelas pessoas públicas, desde que – e este aspecto é primacial – essa informação seja responsável, assentando em métodos de investigação e exposição adequados e sólidos. Então, nessas condições, os “media” e os jornalistas têm não só o direito mas até o indeclinável dever de denunciar os erros dos agentes políticos, sejam eles quem forem. É esta uma das mais nobres missões da comunicação social, que a História tanta vezes regista com páginas de ouro. Mas a grande importância sócio/político/cultural do papel dos “media” na denúncia dos podres dos órgãos e dos protagonistas públicos afecta-lhes, ao invés e em compensação, uma enorme responsabilidade no uso desse poder/dever. Uma responsabilidade extraordinária decorrente do extraordinário poder que a faculdade de denúncia mediática transporta.

III.1.4. Ou seja, e regressando ao caso do “Semanário” que nos ocupa, se o jornal dispunha de indícios sérios, confirmados, sólidos, dos eventos que noticiou a 14 de Fevereiro de 2003, tinha o dever de os publicar, prestando assim um inestimável serviço à comunidade. Se, ao invés, esses eventos não estavam confirmados, se a investigação não fora adequada, se se tratava de meros boatos sem consistência, ou, pior ainda, se tudo ou grande parte fora inventado ou conjecturado sem bases suficientes, então, nesta segunda hipótese, e tendo ainda em vista o melindre do universo e das notícias em sede, então a publicação das peças configuraria uma falta muito grave. Este é o quadro que preside à apreciação ético/legal das peças de 14 de Fevereiro.

III.2. Aliás, se a comunicação social é protegida, prestigiada e privilegiada pelo Estado isso deve-se precisamente ao papel de serviço público que ela supostamente exerce, disponibilizando à população informação pertinente ao conhecimento do mundo e à tomada de decisões apropriadas pelos consumidores de informação nas suas vidas familiares, profissionais e cívicas. Toda a legislação reguladora da comunicação social, desde a Constituição da República Portuguesa às variadas leis especiais que orientam e organizam o cenário mediático nacional (para não falar já em legislação comunitária e internacional que abunda no mesmo sentido) prevêem direitos, liberdades, garantias, faculdades, acessos, imunidades de toda a ordem para os profissionais dos “media” e para os respectivos órgãos. É assim designadamente no Estatuto do Jornalista, na Lei de Imprensa, na Lei da Rádio, na Lei da Televisão, no Código Deontológico do Jornalista. Porquê? Decerto não por futilidade ou favoritismo e sim porque, em troca de tantas facilidades, se aguarda e se exige dos “media”, em retorno, um serviço manifestamente muito importante, pois de outro modo não se justificariam aquelas consideráveis vantagens e benesses legais.

III.2.1. Esse retorno que se espera dos “media” é o rigor. O legislador desenhou um amplo edifício de direitos e faculdades excepcionais em benefício da comunicação social porque só assim ela nos pode dar, a todos nós, informação de qualidade, mas, visto o problema do outro lado, somente quando a comunicação social nos disponibiliza informação rigorosa é que ela então cumpre o seu dever constitucional e legal, fazendo jus às facilidades incomuns que o Estado lhe deferiu. O rigor informativo, com regras, com ética, com segurança, é pois o elo que inexoravelmente liga os “media” à comunidade organizada que é o Estado. O Estado, sobretudo através do seu papel de legislador, mas também nos de regulador e de executor, contratou (implicitamente) com os “media” uma troca de serviços: facilidades contra rigor. Se uma das partes contratantes falha no cumprimento das suas obrigações – o Estado, se deixar de proporcionar liberdade e facilidades; os “media”, se deixarem de ser rigorosos – intervem irreversivelmente uma preocupante crise no sistema, com efeitos na saúde do Estado de Direito, e, portanto, no próprio equilíbrio do regime democrático.

III.2.2. Daqui a grande delicadeza da questão concreta que agora se dirime, uma vez que, considerando-se os valores concretamente em jogo (direitos de personalidade de pessoas públicas, a estabilidade política do país, a imagem de responsáveis e de instituições centrais do Estado e do regime democrático) a eventual quebra do contrato implícito que acima se referenciou põe inclusivamente em perigo a sua vigência. Um contrato pode até ser pontualmente violado sem que isso inquine a sua vigência, é certo, mas, se o é na sua essência filosófica, se o é de uma tal forma que o respectivo clausulado virtual não consente, sem fissuras estruturais no edifício, a permanência do acordo que ele consubstancia, então temos uma crise do sistema contratualizado cuja ultrapassagem não se afigura nada fácil.

III.3. A esta luz, as notícias do “Semanário” em consideração, contextualizadas com o desmentido que foi divulgado apenas poucas horas depois da sua publicação, corporiza uma infracção típica do contrato tácito de boa fé existente entre o Estado legislador/regulador e os “media”, pois,

– Publica peças altamente sensacionalistas visando a eventual comissão de ilegalidades, umas antigas (em invocada investigação) e outras recentes por parte de membros do Governo, alguns deles nomeados, peças que o próprio jornal vem logo depois reconhecer não assentarem em bases credíveis;

– O reconhecimento da falta de fidedignidade das notícias é feito no próprio dia da saída das peças, quando ainda não houvera tempo para uma investigação capaz que pudesse ter prejudicado as conclusões da pretensa investigação que originara as peças desmentidas, o que indicia a completa carência de rigor na preparação original das notícias;

– Mesmo quando, no desmentido, se pretende defender uma parte da informação contestada (“a direcção de informação do jornal confirma a informação de que fontes do Ministério da Justiça divulgaram informações sobre pessoas alegadamente envolvidas na rede de pedofilia em investigação”) essa defesa, sem as concretizações que se deixariam cair a seguir, resulta totalmente inócua, uma vez que, destituídas dos factos que se desmentem, as peças do “Semanário” não têm qualquer consistência noticiosa, elas deixam de poder assumir uma substância minimamente coerente e inovadora que poderia caracterizá-las como notícias;

– De resto, nem nesse desmentido nem em explicação aos seus leitores (que estranhamente não houve) nem na resposta à AACS o “Semanário” aduz jamais um único esclarecimento fundamentado e crível sobre as razões da divulgação de eventos tão graves que afinal não tinham qualquer sustentação;

– Resulta óbvio da consideração de tudo o que precede, que não foram cumpridas pelo “Semanário” importantes regras ético/deontológicas que no caso urgiam, a saber e pelo menos, utilização de fontes seguras e diversificadas, cruzamento de informação, exercício do princípio do contraditório e ponderação equilibrada da informação séria disponível;

– De todo o processo de obtenção, preparação e divulgação das notícias, bem como da defesa pública (quase inexistente) e institucional do “Semanário” no presente processo desprende-se uma ilação irrecusável que aponta para a leviandade do procedimento do “Semanário”, roçando mesmo a irresponsabilidade, agravada pela circunstância, já acima salientada na Deliberação, de estarmos perante uma temática política, ética e socialmente explosiva.

III.4. A defesa que o “Semanário” dirigiu à Alta Autoridade é supreendentemente frágil. Ela filia-se em três pontos de argumentação:

1. Não é verdade que tenha havido desmentido, pois só parcialmente se reconheceu serem as notícias falsas;

2. Insiste-se que as “fontes” do “Semanário” são seguras;

3. O “Semanário” não teria assim infringido nenhuma regra ético/legal.

III.4.1. Ora, conforme já se dissera em III.3., a parte das peças que o “Semanário” desmentiu era a única concreta, a única com conteúdo, a única que noticiava, a única que emprestava aos artigos um sentido razoável, informativamente interessante. Sem as concretizações que o Director do “Semanário” retirou no dia seguinte à sua publicação, o que é que fica do que o “Semanário” disse a 14 de Fevereiro? Praticamente nada. Ficam insinuações vagas de que “fontes” do Ministério da Justiça (quais? a Ministra? outras?) divulgaram notícias sobre pessoas alegadamente envolvidas na rede de pedofilia (que pessoas? e que notícias divulgaram, a quem e em que circunstância? e dizendo o quê?). A verdade é que as peças de 14 de Fevereiro somente continham um sentido noticiável, depois desautorizado, devido às concretizações que incluía, aos pormenores, às pessoas identificadas. Sem esses detalhes, agora desmentidos, as notícias não existem, são meros boatos vagos, informes e inconsequentes. A tese do Director do “Semanário” de que as peças têm fundamento apesar do desmentido é insustentável, não resistindo a uma apreciação elementar.

III.4.2. Assente que o desmentido destruiu as peças, permanecem de pé interrogações cruciais que o “Semanário” não tentou sequer esclarecer, a saber:

– Porque é que foram então noticiados factos inteiramente desprovidos de confirmação?;

– Qual a origem e a explicação para esse erro, admitindo-se que o foi e que não se tratou de manipulação?;

_ Porque é que não se assumiu plenamente a falha, pedindo-se desculpa aos leitores?

III.4.3. A debilidade da posição do “Semanário” é acentuada pela brevidade cronológica do desmentido, já acima assinalada na Deliberação. Com efeito, a celeridade e a leveza do desmentido sublinham a enormidade da falha cometida. Mais: aquela debilidade adensa-se quando se atenta em que o periódico não informou sequer os seus leitores sobre a falta de qualidade das notícias em contestação. O desmentido não foi publicado no “Semanário”, teve apenas divulgação através da Lusa. Para um leitor do “Semanário” que não teve acesso ao desmentido, para um leitor que acredite no seu jornal, a informação de 14 de Fevereiro continua a ser válida. Este facto, excepcionalmente grave, não tem explicação.

III.4.4. A incipiência da defesa do “Semanário” é, por si mesma, um facto inquietante na economia da análise, pois parece indicar que o órgão sindicado conta com a distracção ou com a ausência de exigência crítica por parte da opinião pública e dos órgãos de Estado. Juntamente com a recusa em pedir desculpa aos seus leitores, esta expectativa de permissividade que dir-se-ía impregnar a atitude do “Semanário” em todo este incidente resulta muito constrangedora. Evidentemente que a regulação não pode resignar-se com aquela expectativa, em tudo contrária ao cumprimento das atribuições que a lei lhe afecta.

III.5. Actuando desta maneira, o “Semanário” violou nomeadamente e decerto, entre outros, os seguintes comandos normativos:

Artigo 26º da Constituição da República Portuguesa;

“Artigo 26º

Outros direitos pessoais

1- A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

2- A lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.

3- A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.

4- A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”.

Artigo 14º do Estatuto do Jornalista, Lei nº 1/99 de 13 de Janeiro;

“Artigo 14º

Deveres

Independentemente do disposto no respectivo código deontológico, constituem deveres fundamentais dos jornalistas:

a) Exercer a actividade com respeito pela ética profissional, informando com rigor e isenção;

(…)

c) Abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção da inocência;

(…)

g) Respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas;

h) Não falsificar ou encenar situações com intuitos de abusar da boa fé do público;

(…)”

Pontos 1 e 9 do Código Deontológico do Jornalista:

“1- O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.

(…)

9- O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos excepto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende. O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas.”

Também terá sido infringido neste caso o disposto no artigo 3º da Lei de Imprensa, Lei nº 2/99, de 13 de Janeiro;

“Artigo 3º

Limites

A liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática.”

III.6. A gravidade da prática do “Semanário” que se analisa é pois, no registo ético/deontológico, invulgarmente preocupante. Não nos encontramos face a um erro pontual ou fortuito, que se pudesse ficar a dever a precipitação minimizavel ou mera negligência por inabilidade profissional. Tudo – os factos; o relevo dos factos; o imediato desmentido sem explicações; a ausência de um qualquer esclarecimento sólido sobre o erro que servisse de circunstancia atenuante; a recusa em pedir desculpa aos leitores – tudo configura, no mínimo, uma situação de completo desnorte, de incrível falta de cuidado, de leveza levada ao extremo. Ou seja, tudo indicia uma atitude dolosa do jornal, pelo menos na categoria do dolo eventual. Se nos socorrermos da figura, usada em III.2.1. e III.2.2., do contrato implícito entre o Estado e os “media”, dir-se-ia que chegámos, neste caso, a um ponto traumático de ruptura, de solução muito arriscada, por manifesto e grosseiro incumprimento de um dos contratantes, um órgão de comunicação social preciso. Não prevendo a lei, quanto à imprensa, um desiderato mais acutilante do que a Recomendação, é a ela que a Deliberação recorrerá, em ordem a ajudar a cicatrizar os males causados ao conjunto dos “media” portugueses, e não apenas aos leitores do “Semanário”, por esta extraordinária violação ético/legal.

III.7. Os factos despistados atingem uma tal extensão de gravidade que importa finalmente reflectir sobre o seu significado projectivo. E qualquer reflexão que a propósito se promova só pode concluir que um “jornalismo” inspirado em práticas tão grosseiras como a que o “Semanário” denúncia neste episódio é absolutamente inaceitável e tem de ser repudiado por todos os agentes mediáticos, a começar necessariamente pelos jornalistas. Tal repudio é uma condição da credibilidade do edifício da informação no nosso país, um requisito da confiança que os cidadãos têm de continuar a depositar nos “media”. Um repúdio que impeça que acontecimentos deste tipo possam jamais vir a ser considerados normais, ou sequer desculpáveis, no nosso universo mediático.

IV. CONCLUSÃO/RECOMENDAÇÃO

Tendo, por sua iniciativa, apreciado a curialidade ético/legal de peças inclusas nas páginas 1 e 11 do “Semanário” de 14 de Fevereiro de 2003, em que se noticiava que a Ministra da Justiça tinha pedido e obtido da Polícia Judiciária uma lista de eventuais pedófilos sob investigação, o que, a confirmar-se, seria ilegal, e que essa hipotética lista conteria o nome de vários governantes, um dos quais identificado, situação que teria, sempre segundo o noticiado, ocasionado forte divisão no Governo, mas considerando também que tais peças foram nesse mesmo dia desmentidas na sua parte principal pelo Director do periódico, aliás sem uma explicação convincente para o erro, explicação que também não foi disponibilizada na respectivo processo aberto na AACS nem em nenhuma outra sede conhecida, a Alta Autoridade para a Comunicação Social delibera:

a) Considerar extrema e inusitadamente grave este procedimento ético/legal do “Semanário”, para o qual não se detectam quaisquer circunstâncias atenuantes;

b) Recomendar ao “Semanário” que, no futuro, cumpra escrupulosamente o normativo ético/legal a que está vinculado quanto ao rigor da informação, designadamente no uso de adequados mecanismos de investigação, escolha das fontes, cruzamento de informação, princípio do contraditório e ponderação da seriedade da informação disponível para publicação.

Esta deliberação foi aprovada com votos a favor de Sebastião Lima Rego (Relator), Armando Torres Paulo (Presidente), José Garibaldi (Vice-Presidente), Manuela Matos e José Manuel Mendes, Artur Portela (só a conclusão), Joel Frederico da Silveira (só a conclusão) (c/declaração de voto), Maria de Lurdes Monteiro (só a conclusão), e Carlos Veiga Pereira (só a conclusão).

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