A intervenção de Vítor Norte no colóquio “Os Média e a Justiça”

A aplicação levada ao extremo do princípio da publicadade nos tribunais pode ter consequências negativas ou mesmo pôr em causa outros objectivos daquele princípio, defendeu Vítor Norte, do Sindicato dos Funcionários Judiciais, no colóquio “Os Média e a Justiça”.

Para Vítor Norte, esta questão leva a que a divulgação da notícia jurídica deva rodear-se de cuidados especiais, na medida em que “ingerências descabidas da comunicação social” podem sujeitar os cidadãos a “um duplo julgamento com consequências irrepraráveis”.

É o seguinte o texto integral da intervenção de Vítor Norte, no painel “Direitos das partes no processo, princípio da publicidade e direito à informação e o princípio da reserva do juiz”, integrado no colóquio interprofissional “Os Média e a Justiça”, que decorreu a 30 de Novembro de 2002, na Fundação Gulbenkian:

“O princípio da publicidade é um dos princípios enformadores mais importantes que sustentam o n/ ordenamento jurídico. Tal como noutros Países do Velho Continente surge como uma conquista do pensamento liberal em reacção ao carácter secreto do processo, característico do sistema Europeu comum medieval que vigorou durante os períodos feudal e absolutista.

“A publicidade permite uma maior confiança na função jurisdicional e representa um garante na transparência da justiça. A regra da publicidade constitui uma das formas de assegurar a plena e ampla autenticidade e independência de todos os intervenientes processuais, que a coberto dela podem acompanhar, vigiando, a forma como o Tribunal se comporta na administração da justiça, e este, por seu turno, ganha força para poder impor legitimamente as suas decisões, constituindo a audiência final o campo por excelência dessa manifestação.

“O princípio da publicidade não se prende apenas com a imagem exterior da justiça porque, internamente, do mesmo decorre também a possibilidade das partes poderem consultar e ter acesso ao processo, garantindo-lhes uma melhor e mais eficaz defesa das suas pretensões.

“Pela importância adquirida este princípio obteve consagração legal no nosso ordenamento jurídico. Também diversos textos internacionais o consideram um pilar na salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública, como por exemplo a Declaração Universal dos Direitos do Humanos (art.º. 10º) e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º. 6º. nº.1).

“Em certas situações, atendendo à ponderação dos interesses e valores em jogo, nem sempre a publicidade pode ser plenamente observada. Se o fosse poderia colocar embaraços ao normal funcionamento da justiça, com natural prejuízo para os cidadãos e para toda a comunidade.

“É por isso que o princípio da publicidade aparece temperado com elementos de reserva de modo a evitar que se fruste a pretensão do requerente ou a descoberta da verdade e que noutras situações se opte pela preservação da honra, bom nome e imagem pública dos envolvidos.

“Apesar da sua importância na realização da justiça deve, em certas situações, ser suavizado por outras normas que de certo modo parecem limitá-lo, mas que no fundo acabam por lhe dar sentido.

“As limitações justificam-se perante situações susceptíveis pelo seu conteúdo de causar dano à dignidade das pessoas, à intimidade da vida privada ou familiar ou à moral pública, ou suficientes para colocar em crise a eficácia da decisão a proferir.

“Além das limitações impostas pelo legislador ordinário o próprio legislador constituinte, ciente da importância dos limites entendeu dar-lhes dignidade elevando-os ao texto constitucional (n.º. 3 ao art.º. 20º., aquando da Revisão de 1997).

“Mas em nenhuma área este controlo é tão efectivo e apertado como no Processo Penal.

“É que em matéria penal, para além dos valores comuns aos outros ramos do direito, estão ainda em causa outros interesses característicos e talvez ainda mais relevantes como são, nomeadamente, o interesse da investigação e o da presunção da inocência do arguido.

“A preservação do segredo não representa uma diminuição de direitos mas, pelo contrário, constitui pilar fundamental no nosso ordenamento jurídico na medida em que permite acautelar os direitos protegidos dos cidadãos, facilita a investigação, os objectivos de perseguição e repressão criminais, permitindo um justiça mais objectiva e livre das pressões públicas e evitando também a preservação da dignidade pessoal e agressões desnecessárias aos intervenientes.

“É que uma publicidade incoerente e desregrada não é a verdadeira publicidade jurídica, mas apenas publicismo ou mera propagação e põe em causa os mais elementares direitos dos cidadãos.

“Não esqueçamos que uma publicidade levada ao extremo em matérias sensíveis poderá ter consequências bastantes negativas, pondo mesmo em causa os nobres objectivos do princípio da publicidade.

“A publicidade mediata como meio de interposição entre um qualquer meio de comunicação social, os actos processuais e o público é questão bastante delicada, complexa e que cada vez mantém maior actualidade, na medida em que esta publicidade mediata, realiza, também ela, uma função crucial na publicidade do processo.

“Por isso a divulgação da noticia jurídica deve rodear-se de cautelas especiais. Ingerências descabidas da comunicação social na área reservada à justiça, envolvendo declarações, comentários não fundamentados, entrevistas a testemunhas distorcem a justiça e submetem os cidadãos a um duplo julgamento com consequências irreparáveis.

“Uma narração incorrecta, parcial, por vezes acompanhada de juízos de opinião e até de alguma carga ideológica pode ser extremamente negativa não só para a confiança que os cidadãos depositam na Justiça mas, acima de tudo, pelo atropelo aos mais elementares direitos dos intervenientes processuais.

“Esta problemática reveste ainda maior melindre quando estamos em face de processos sujeitos a segredo de justiça.

“Muito se tem discutido sobre a amplitude das pessoas abrangidas pelo segredo de justiça. É sabido que a lei vincula todos os participantes processuais bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo e tenham tido conhecimento de elementos a ele pertencentes.

“Os funcionários judiciais como profissionais têm conhecimento pleno da tramitação processual, respectivas fases, bem como dos interesses envolvidos. São também eles quem, em primeira mão, são instados pelos meios de comunicação social sendo junto deles que nos Tribunais se tentam colher as primeiras informações.

“Os julgamentos, salvo as excepções previstas e a que atrás aludimos são públicos, sob pena de nulidade, pelo que, qualquer pessoa incluindo os jornalistas poderão livremente assistir, sendo-lhe proporcionado obter todas as informações que se tornem públicas pelo julgamento.

“É permitido aos órgãos de comunicação social, dentro dos limites da lei, a narração circunstanciada do teor de actos processuais que se não encontrem cobertos por segredo de justiça ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral.

“O mesmo não sucederá quanto à recolha de imagens ou outros registos para os quais é necessário autorização da autoridade judiciária.

“Os funcionários lidam diariamente com os demais operadores judiciários e demais utentes e por isso estão sujeitos a vários condicionalismos. Para certas situações não existem regras gerais de conduta ou pelo menos elas não estão claramente definidas. Seria desejável que tais regras fossem mais esclarecedoras, definindo as áreas de acção e autonomizando o serviço da secretaria. Esta será uma das formas de atenuar o constrangimento no relacionamento interprofissional.

“Não compete aos funcionários de justiça autorizar ou facultar aos órgãos de comunicação social elementos sobre o processo bem como a transmissão ou registo de imagens, como atrás já foi referido.

“Competirá apenas ao funcionário o dever de, quando solicitado pelo jornalista, encaminhar e esclarecer sobre a forma de como poderá ser satisfeita a pretensão. Deverá assim o funcionário prestar apenas os esclarecimentos que têm por objectivo facilitar o jornalista como o faria com qualquer outro utente, mas nunca no sentido de violar o sigilo a que por inerência das suas funções está obrigado, sob pena de incorrer em procedimento criminal e sanção disciplinar.

“O funcionário que de qualquer forma colaborar com os jornalista na divulgação de informações sujeitas a segredo de justiça incorrerá em responsabilidade criminal (art.º. 383º. do C. Penal-violação de segredo por funcionário). Incorrerá ainda em procedimento disciplinar por violação do dever geral de sigilo a que está sujeita a generalidade dos funcionários públicos, previsto na al. e) do n.º. 4 do art.º. 3º. Do Dec.Lei n.º. 24/84, de 16 de Janeiro, que impõe a todos os funcionários o dever de guardar segredo profissional relativamente aos factos de que tenham conhecimento em virtude do exercício das suas funções e que não se destinem a ser do domínio público. Sobre os funcionários judiciais cabe ainda um dever especial de sigilo consagrado no art.º 66º. n.º. 2 al. a) do Dec-Lei n.º. 343/99, de 26/8 (Estatuto dos Funcionários Judiciais) que dispõe que é dever dos funcionários de justiça “não fazer declarações ou comentários sobre os processos, sem prejuízo da prestação de informações que constituem actos de serviço.”

“Será útil para todos que de futuro se encontrem formas de colaboração que atenuem os atritos eventualmente existentes definindo-se regras gerais de conduta e funcionamento que permitam ao jornalista exercer o direito fundamental à informação sem violação e sem atropelo ao nobre fim do principio da publicidade, colocando à disposição da sociedade todas as vantagens que a informação proporciona nos nossos dias.

“Nesse sentido os funcionários judiciais estão dispostos a colaborar.”

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