A intervenção de Eduardo Dâmaso no colóquio “Os Média e a Justiça”

Intervindo no colóquio “Os Media e a Justiça”, O jornalista Eduardo Dâmaso, subdirector do “Público”, disse que a justiça e o jornalismo são ambos “instrumentos essenciais do único poder que têm os que não têm poder” e considerou que o jornalismo sério tem de procurar “o padrão da sua independência”.

É o seguinte o texto integral da intervenção de Eduardo Dâmaso:

Contra o jornalismo de transcrição, por uma justiça que o seja

Comecemos pelo jornalismo para falar um pouco daquilo que é a nossa identidade. Pelo menos como eu a vejo, ao fim de vinte anos de experiência profissional.

Os jornalistas têm estado debaixo de muitos e diversificados fogos. Personagens centrais do espaço mediático não escapam às pulsões de campos e forças contraditórias, sobretudo daquilo que é hoje a grelha do poder nas sociedades modernas — poder político, poder judicial, poder económico, poder mediático — em que se misturam elementos como a tradição das democracias representativas e a sua crise, os novos centros informais de poder ( directamente com força decisória ou detentores de grande capacidade de influência), as agendas mediáticas do audiovisual, os interesses dos proprietários dos media (económicos e políticos), a habitual força da economia face à política, a dimensão coactiva do direito e a sua interpretação processual pelas magistraturas, o corporativismo dos jornalistas e por aí adiante.

Comecemos por aquilo que é mais inevitável quando falamos da identidade dos jornalistas ou mesmo dos magistrados, advogados e outros actores do sistema judicial: a política. Esse é território onde se jogam todos os papéis e o seu próprio reverso, onde se joga o dever ser de uma atitude moral e ética mas que também pode ser o território implacável de uma dupla verdade, uma dupla moral, uma dupla contabilidade. É o campo para onde convergem todos os papéis, pelo menos teoricamente, seja no cumprimento de uma obrigação profissional, de um impulso cívico, na construção do resultado de um interesse mais ou menos encapotado, no desiderato civilizacional de modelar a democracia como um sistema de Governo para o povo e pelo povo.

Vivemos, pois, um tempo em que um certo discurso político que ciclicamente vem ao de cima consoante os pretextos mais ou menos suculentos que arranja, não perde oportunidade de desencadear um processo de transferência de culpa sobre a crise da democracia representativa para o chamado quarto poder. A abstenção, as notícias incómodas para os orgãos de soberania, outras que tocam em “lobbies” próximos do poder político, os excessos dos directos de televisões e rádios em tragédias como as de Entre-os-Rios, tudo tem servido para, em alguns momentos, diabolizar o poder excessivo dos media. Nesta matéria, porém, como já vai sendo hábito, a gritaria tem-se imposto e tomado o lugar de uma discussão que deveria ser séria, feita de forma serena e racional, assumindo à partida que não há “vacas sagradas”, nem do lado dos jornalistas nem na barricada dos políticos.

E qual a discussão que há a fazer? Muito para lá do problema da erosão que a agenda mediática causa nas instituições do Estado é preciso recentrar o debate e discutir o que é elas próprias e os seus representantes, legitimamente eleitos ou designados por uma lógica de confiança política, fazem para estancar essa crise de confiança que atravessa o país. É um imperativo democrático não consentir que esse debate essencial para ultrapassar o actual estado depressivo — já não meramente de melancolia democrática — se faça ao lado dos verdadeiros problemas e que são os da transparência da vida política, da dignificação das instituições e dos orgãos de soberania, da recuperação, pela sua própria regeneração e da classe dirigente. Isso passa obviamente pela coragem de assumir, definitivamente, que o financiamento dos partidos, seja ele público ou privado, tem de se tornar transparente, quero dizer amplamente escrutinável, que os partidos não podem continuar a refugiar-se numa hipócrita manipulação da verdade dos regulamentos que eles próprios aprovaram para se mostrarem cumpridores, que a imunidade parlamentar é um regime excessivamente blindado, que as incompatibilidades são torpedeadas por uma série de alçapões sabiamente previstos nas sucessivas leis feitas, que o regime de concessão de obras públicas foi um cancro para a democracia, que as expropriações de terrenos são um negócio de milhões, que o tráfico de influências está há muitos anos a minar o sistema, que o combate à corrupção nunca passou da fase das meras — mas sempre sonoras — declarações de intenções, que muitas das privatizações foram feridas por uma lógica de compadrios políticos e que o esvaziamento da máquina fiscal não foi inocente. Portugal enquanto se modernizava por for a — e como tudo isso foi tão teórico como hoje está bem à vista … — corroía-se por dentro e isso é uma marca dos anos 80 e 90.

O Bloco Central dos interesses configurou o Estado à sua medida cavando um fosso entre a política e os cidadãos. E, neste momento, os partidos — todos! — ou assumem que a recuperação de uma parte dos 3,5 milhões de portugueses que não votam é uma prioridade ou estão inevitavelmente a abrir caminho para que um dia exista em Portugal uma república de juízes ou mesmo de outra coisa qualquer, liderada por um messias purificador de almas perdidas pela devassidão corrupta do dinheiro e da gula. É uma conclusão que vem da sociologia política mais elementar por força do agravamento das desigualdades sociais e económicas e não da agitação de um qualquer espectro sobre a manipulação política das magistraturas, como agora se vê e se ouve na ressaca do fim da I República em Itália quando se analisam os efeitos, as consequências, os resultados da operação “Mãos Limpas”, em Itália.

Daqui saltamos para o debate sobre o jornalismo. Há uns meses, a revista Micromega, dirigida pelo filósofo italiano Paolo Flores D’Arcais, publicou um conjunto de entrevistas e conversas sobre os dez anos da operação “Mãos Limpas”. Numa delas, o procurador-geral de Milão, Saverio Borrelli conversou com o escritor António Tabucchi e transportando o debate aberto há décadas em Itália sobre a relação das convulsões do poder com a sociedade, os eleitores e a sua percepção da realidade do poder, para a actual conjuntura exprimiam uma fortíssima e inquietante dúvida: os problemas determinados pelo conflito de interesses de Berlusconi — propriedade da esmagadora maioria dos principais media italianos, das principais agências de publicidade, de empresas de construção, de um verdadeiro império em tudo relacionado ou relacionável com o facto de ser primeiro-ministro — alguma vez chegariam, na sua essência, ao conhecimento consciente dos eleitores? Seriam os jornalistas “generalistas” capazes de se libertar dos constrangimentos da precaridade do emprego para mediar com distanciamento e independência a relação entre o povo e o homem que lhe tinha vendido um novo mito de sucesso individual? Seriam capazes de explicar as gravíssimas leis aprovadas por Berlusconi em seu próprio favor para se tentar pôr a salvo da justiça? Seriam capazes de explicar que estava — e está! — em curso uma privatização do poder em Itália? Na verdade, durante uns dois anos de mandato não o conseguiram, verdade se diga. Nem eles nem os partidos de oposição, desse mosaico indecifrável que é o campo de centro-esquerda em Itália. Só a deterioração das condições económicas e os novo protagonismos que vieram dos campos da cultura e do sindicalismo — Nanni Moretti, Sérgio Cofferati e Paolo Flores D’Arcais — o conseguiram, juntando uma indignação racionalizada e digerível pela opinião pública. Sobretudo depois do efeito explosivo de umas leis laborais que vieram agravar a já de si muito fraca protecção dos direitos dos trabalhadores.

A situação italiana é o grande laboratório político-social do nosso tempo e, porventura, a Itália é a primeira democracia judicial que conhecemos por força da confluência explosiva desses elementos químicos altamente inflamáveis que são uma classe política decadente e corrupta substituída por uma “teledemocracia”, uma magistratura liberta dos velhos condicionalismos do poder que a viam como uma mera extensão do palácio do princípe e uma comunicação social que representa mais o ambiente desta nova era do que propriamente a portadora de uma nova mensagem.

De resto, citando Cunha Rodrigues, a comunicação social dos novos tempos “estimulou o aparecimento de um tipo de homem que utiliza a informação como bem de consumo e a ela entrega acríticamente as suas opções e as suas escolhas; que recebe por bons os valores, os gostos e as tendências que lhe são transmitidos; que cria dependências que o levam a pedir mais do mesmo; que pouco a pouco, vai perdendo a sua individualidade e capacidade de autodeterminação”. É este o indispensável enquadramento político, social e económico da discussão que aqui nos junta. É ele que nos dá a dimensão dos desafios que se colocam tanto a jornalistas como a magistrados. Olhemos, para já, em direcção ao nosso jornalismo.

É, na verdade, a globalidade do jornalismo que se faz por esse mundo for a — e o que se faz em Portugal não é nenhum oásis redentor — que tem de confrontar-se consigo próprio e com os novos desafios que enfrenta, numa época em que a linguagem política incorporada pelos media é em si um factor decisivo para avaliar a qualidade e a saúde da democracia de um país.

O jornalismo continua a ser demasiado importante para não se questionar, desde logo auto-questionar.

Mas saíamos por instantes da centralidade analítica desse relacionamento entre jornalismo e política, “strictu sensu”, e regressemos ao país para dizer algumas coisas sobre o jornalismo.

A tragédia de Entre-os-Rios mostrou-nos a geografia perdida de um país que há muito não aparecia nos directos televisivos mas, sobretudo, na cartografia do poder político. Mostrou-nos um país trágico em toda a sua dimensão, sem eleitores que cheguem para ser considerado nas ponderações eleitorais da relação dinheiro (investimento)=votos. Entre-os-Rios mostrou-nos , como se ainda precisássemos de saber, que uns portugueses são mais do que os outros e que o valor dos seus direitos é profundamente variável consoante vivam no litoral desenvolvido ou no velho interior, rural, solitário, desprezado.

O país foi crescendo a duas velocidades e o jornalismo também.

Em Portugal imperou e impera um paradigma político marcado pelo discurso tecnocrata, mera projecção de meia dúzia de banalidades sobre a “eficácia”, a “decisão”, a “obra feita”, copiadas conjunturalmente de outras sociedades, temperado pelas virtudes de realidades incontornáveis como o “lobbyng” e o “marketing”, esses instrumentos de poder importados de sistemas políticos como o norte-americano.

Em Portugal impera também um jornalismo que assimila esse discurso como se fosse seu, multiplicando-se nos jornais e nas televisões os especialistas improvisados do comentário sobre tudo e sobre nada. Há pouco lugar para a dúvida, para a perplexidade e para uma atitude investigativa.

O espaço dos media acaba por ser uma espécie de arena onde os interesses mais poderosos, ainda que contraditórios, têm hoje uma força quase imparável e vão jogando os seus peões. Isto é, o poder político e económico que todos os dias são o espelho de interesses diversos nas chamadas notícias do dia e no espaço disponibilizado pelas opções editoriais dos orgãos de comunicação social, também geram as suas linhas de fractura nas instâncias de poder das redacções, seja por razões ideológicas de fundo ou tão só por paixões de tipo clubístico ou pura convergência de interesses.

O jornalismo reflecte tudo isso. Há um jornalismo que foi mais social-democrata quando o PSD esteve no poder, outro mais socialista quando o PS regressou ao poder. Há um jornalismo que aceita defender uma qualquer e difusa ideia de interesse nacional mesmo quando não se sabe do que se está a falar. Há um jornalismo reverente que tende cada vez mais a relativizar a lei e o bom senso na governação quando se trata de conferir benesses a personalidades e grupos de interesse que se destacam pelos “distintos serviços prestados ao Estado”. Há um jornalismo do Benfica, outro do Futebol Clube do Porto e outro do Sporting. Já lá vai o tempo da falsa neutralidade dos que se escudavam na Académica para não terem de assumir em público as suas preferências pelos grandes. Há um jornalismo que anda na órbita de qualquer poder e é pago com favores, avenças, em espécie. Esse jornalismo transita das redacções para os gabinetes ministeriais, destes para as empresas de comunicação, destas para as redacções. Há um jornalismo influente que não consegue viver exclusivamente do seu salário.

Penso que esse jornalismo é dominado por uma relação mais íntima com os poderes do que com a opinião pública. Não tem autonomia crítica, atitudes distanciadas e está mais no quarto do poder do que na farda de quarto poder. E a verdade é que essa tendência se vem a generalizar. Muitos jornalistas olham cada vez menos para lá do microfone que anuncia a excelência da obra política, desprezam cada vez mais a necessidade de procurar as contradições dos poderes na gestão do poder de Estado.

As mediocridades de um lado e de outro encontram-se com frequência, representando um espelho único da mesma realidade mesquinha, especializada na falsificação e manipulação da verdade. Esses jornalistas que passam a vida aos ziguezagues entre as campanhas políticas e as redacções, que ora falam como porta-vozes de um Presidente, de um primeiro-ministro, de um ministro ou de um alto-comissário qualquer e meia dúzia de dias depois são capazes de fazer um discurso sobre ética e deontologia, são meras extensões, altifalantes manipuláveis, tipo “usar e deitar fora”, do poder político e económico.

Uns e outros matam a credibilidade dos jornalistas e da democracia, são produtos que o dinheiro pode pôr num qualquer bolso ou numa dourada reforma antecipada do dito jornalismo. São siameses inseparáveis!

Admitindo e compreendendo que não suportem um discurso como o meu, fundamentalista, se quiserem, deixo claro que não suporto essa categoria de “jornalistas” que passam a vida a defender e a representar nas redacções, de forma já pouco encapotada, interesses alheios ao jornalismo. O jornalismo, seja ele político ou quaquer outro, deve obedecer a uma regra de ouro imortalizada por Hubert Beuve-Méry, fundador do Le Monde: contacto, distância, contacto, distância…

Surpreende-me, de resto, que, alguns jornalistas, sendo tão íntimos de diversos poderes e personalidades tenham prescindido da capacidade de análise crítica que o jornalismo deve ter e que, mesmo assim, tenham o despudor de continuar a invocar tal condição profissional. Isto é, surpreende-me que não se surpreendam com a forma fácil e rápida como se enriquece na política portuguesa de há uns vinte anos a esta parte e, sobretudo, nos ciclos de poder absoluto. Surpreende-me que nunca tenham encontrado gente, sem passado profissional, sem currículo e sem competências específicas conhecidas, que no curto prazo de uma legislatura arruma a vida e salta directamente para o campeonato dos milhões das empresas públicas de direito privado, dos novos grupos financeiros que nascem de um passe de magia, das empresas que detinham situações de monopólio nos ministérios que esses dirigentes políticos tutelavam.

Quando nos interrogamos sobre a pobreza da nossa vida política e queremos genuinamente recusar ser um mero espelho dessa realidade há que retirar todas as consequências disso. Há que compreender o sistema político no seu todo e não meramente o que a vida política apenas comporta de confronto partidário. Surpreende-me, por isso, que não sintam uma tremenda inquietação cívica e que não se esforcem para que o seu trabalho, sem cair numa barricada ideológica ou no inquérito puramente policial assimilando papéis que não são os do jornalista, reflicta essa realidade submersa da nossa vida política.

Tudo isso me surpreende mas também entendo que cada um vê o que quer. Só não admito que, na insuportável condição de “professores”, me queiram impor uma nova espécie de “jornalismo cívico”, — versão copiada, revista e actualizada do chamado “jornalismo positivo” — , à medida de um conceito que é suposto convergir para um interesse comum da comunidade. Ou seja, que nos diz que estamos todos no mesmo barco perante um povo que se distancia das instituições, dos órgãos de soberania, do jornalismo, afinal, da democracia.

O desafio que hoje se coloca a qualquer tentativa de fazer um jornalismo sério está na necessidade de procurar o padrão da sua própria independência, longe daquilo que são os interesses dos poderes formais e fácticos da nossa sociedade. A homogeneidade das mensagens jornalísticas que nos estão a impôr tem de ser combatida com uma mentalidade profissional que ainda se alimente das suas próprias perplexidades, do espírito investigativo e crítico. Essa é a única porta possível para abrir pequenas fissuras no monolítico conglomerado em que se converteu a informação nos dias que correm.

O jornalismo de hoje corre o risco de se autosatisfazer com os pequenos factos, as pequenas “cachas” ou as notícias de efeito sensacional mas evidentemente dirigido que nos é dado pela multidão crescente de gabinetes de imprensa, de porta-vozes, de fontes autorizadas que nos pôem de água na boca e dentes a ranger para o parceiro do lado por causa de uma minúscula reacção exclusiva do ministro A, do secretário de Estado B, do presidente do conselho de administração C.

Nos tempos que correm, uma elevada percentagem da informação que se produz pertence à categoria de um novo género: o jornalismo de transcrição. Essa é a informação que nos dão os poderes políticos, económicos e sociais em comunicados, conferências de imprensa, “briefings” informais, etc. Tudo o que possa estar fora desse insuportável consenso entre certo tipo de jornalistas e políticos que podem até representar uma certa cultura dominante é de imediato considerado “sensacionalismo” ou “demasiado radical”.

É preciso, por isso, reaprender a pensar. É preciso ter a noção das relações de poder ocultas que atravessam o poder político e económico sem que necessariamente se caia na paranóia conspirativa, tão prejudicial a um bom jornalismo como qualquer tipo de censura. O interesse público, plasmado nas leis da República que devem ser igualmente aplicadas aos que prevaricam, sejam ricos ou pobres, feios ou bonitos, nos valores da boa conduta em sociedade como a seriedade, a honestidade e uma atitude ética e moralmente irrepreensíveis, obriga-nos a fazer um jornalismo rigoroso, tecnicamente irrepreensível, que seja em si um instrumento de cidadania contra tudo o que possa ser uma espécie de insuficiência democrática portuguesa.

O jornalismo cívico que defendo está na procura da verdade, de uma verdade, da que seja possível, daquela que nos possamos acercar. O problema central está hoje no Estado e não apenas na comunicação social. Está num Estado que tem uma dupla contabilidade, uma dupla moral, uma dupla verdade. Está num Estado que sob a capa de uma atitude e de um discurso democrático é frequentemente gerido de uma forma delinquente por grupos que o pôem ao serviço de interesses privados e de grupo.

Essa gestão delinquente acontece um pouco por todo o lado. Em Espanha, o Estado reinventou a violência política à sua maneira, inclusive com a colaboração de Portugal, cujos serviços secretos estiveram envolvidos nos GAL. Em Itália, os mesmos ministros que mandavam na luta contra a Mafia foram condenados — mas nunca presos — por ligações à Cosa Nostra. Em França, os negócios de Estado andam de mãos dadas com o poder obscuro da multinacional Elf, uma verdadeira metástese mafiosa e corruptora que se estende por todo o mundo. Na Alemanha, o impoluto e inatacável chanceler da reunificação, afinal, foi o protagonista de relações menos adequadas na angariação e encobrimento de fundos para o seu partido.

O jornalismo cívico está em viver num estado de permanente sentinela face a este tipo de poder político. É aqui que se joga a grande questão dos tempos modernos que cada vez mais se coloca ao homem: a luta por uma sociedade fundada na ética, na razão e no direito.

Penso que é aqui que a estrada nos junta, jornalistas e magistrados. Sem atavismos e sem cumplicidades, mas unidos num objectivo comum: cumprindo cada parte a sua obrigação profissional, respeitando cada um as suas regras deontológicas, ambos empenhados democraticamente na consolidação das instituições e no respeito pela legalidade. Uns, pelo poder de denúncia objectiva e consistente, pela linguagem simples e directa, pela presença central no campo mediático, outros pelo garante de aplicação de uma justiça independente e livre, são um factor decisivo de apaziguamento de tensões sociais indisfarçáveis que a degradação das condições económicas vai produzindo.

Uns e outros são instrumentos essenciais do único poder que têm os que não têm poder: a defesa da lei e uma aplicação da justiça que não olhe a condições sócio-económicas nem a estatutos preferenciais determinados por uma qualquer imunidade ou capacidade de influência.

É por essa noção de “back to the basics” que renasce já não apenas pela Europa do Sul que se torna indispensável superar o velho paradigma das relações entre comunicação social e justiça, sobretudo entre jornalistas e magistrados, que Cunha Rodrigues sintetiza da seguinte maneira: “ A grande dificuldade dos tempos que correm é a reduzida capacidade de reflexão do sistemas. As relações entre a justiça e a comunicação social traduzem este défice. Os magistrados raramente dominam a lógica e os modos de produção jornalística. Os jornalistas têm, por regra, um conhecimento limitado do direito, da organização judiciária e das regras do processo.”

Este desconhecimento mútuo tem de ser ultrapassado sob pena de um grave dano democrático. Hoje há , de facto, mais coisas a defender do que a inventar. Uma justiça independente e eficaz é tão essencial à democracia como uma comunicação socil livre e pluralista. Em qualquer das funções, o grande desígnio continua a ser o da defesa da liberdade.

O que nos últimos dias temos assistido sobre o caso de alegada pedofilia na Casa Pia obriga-nos a abrir o espírito a esta discussão e não a barricarmo-nos na defesa corporativa das razões de cada um. Há que saber distinguir o essencial do acessório, há que saber onde é que está o lugar de uns e de outros. A brecha aberta por uma atitude investigativa correcta da parte dos jornalistas não pode escorregar para a substituição da informação pura e dura pelo espectáculo de uma emoção descontrolada que pode atingir uma espécie de euforia sanguinária abrindo a época da caça ao suposto pedófilo. Nestas alturas, nós jornalistas, devemos saber olhar para o que foi acontecendo por esse mundo antes de sermos invadidos, esmagados, pela realidade de um escândalo abafado durante décadas pela inércia das instituições, seja ela determinada pela desvalorização social e penal dos crimes sexuais, pela dupla moral de quem tem o poder ou pela gestão deliquente de algumas instituições, consentido e calando atitudes de encobrimento que se aproximam da velha “omertá” siciliana. O essencial está na exigência cívica que deve colocar-se às instituições políticas e judiciais para que funcionem com regularidade, ou seja, com eficácia e independência. Isto é, que a justiça esteja preparada para investigar e punir, sempre enquadrada por factos e não por suposições ou pressões de qualquer espécie, todo o tipo de criminalidade, seja ela a pedofilia ou a corrupção. Ou, ainda, que os seus representantes e os do poder político não se autocomprazam com a construção de verdades formais extraídas de incapacidades ou cumplicidades diversas. É na passividade, na inércia, na incompetência, no segredo, na cumplicidade, na má fé, que está o tão famoso pântano.

Os jornalistas têm de saber dar o tempo da justiça à justiça sem autolimitarem o seu próprio tempo. Mas, verdade se diga, não podem colocar-se no lugar da justiça. Devem exigir que ela funcione, que ela se concretize enquanto indispensável instrumento de procura de uma igualdade possível entre cidadãos. Os jornalistas podem investigar tudo mas a sua regra não é a dos processos sumários, construídos com testemunhos indirectos, obtidos na base da indiscrição ou da alcovitice. Os jornalistas não podem colocar-se no lugar da polícia que investiga, do Ministério Público que acusa e do juíz que julga. A investigação jornalística só é credível se for sólida e inatacável. Se for minuciosa e espartana nos raciocínios sobre as teses que tem à frente, na sua construção e desconstrução. Se souber corrigir os seus próprios erros para não se vulnerabilizar perante os ataques dos que a desvalorizam e colocam ao nível da sacrossanta Inquisição cumprindo o serviço bem remunerado de defender os mais poderosos.

Peguemos neste caso de pedofilia que vem a abalar os alicerces do sistema para situar os desafios que se colocam: é este jornalismo vigilante consigo próprio, com mais dúvidas do que certezas inabaláveis, que tem de saber distanciar-se de quem acusa com um vigor que não teve nos vinte anos transcorridos; que tem de saber procurar as contradições de um poder que preferiu o silêncio e a conveniente ignorância para não ter de actuar; que tem de saber onde está a informação e separá-la da fogueira do espectáculo determinado apenas e só por interesses comerciais; que tem de saber distinguir onde estão os limites da informação e a defesa da privacidade. Tudo isto é defender jornalismo, a liberdade de todos e a democracia.

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