A deliberação da Alta Autoridade sobre a greve na Saúde

Na deliberação aprovada a 23 de Outubro, AACS concluiu que o Ministério da Saúde deve reconhecer que “o direito de acesso às fontes, estabelecido na nossa ordem jurídica, só pode ser garantido desde que as entidades e serviços dele dependentes disponham de autonomia no seu relacionamento com os jornalistas.”

É o seguinte o texto integral da deliberação da Alta Autoridade para a Comunicação Social:

DELIBERAÇÃO SOBRE QUEIXA DO SINDICATO DOS JORNALISTAS CONTRA O MINISTÉRIO DA SAÚDE

(Reunião Plenária de 23 de Outubro de 2002)

I. FACTOS

I.1. O Sindicato dos Jornalistas (SJ) emitiu, em 19 de Julho, um Comunicado relativo a impedimentos no acesso à informação em diversos serviços hospitalares o qual, na parte relevante para o processo, afirma o seguinte:

“O Sindicato dos Jornalistas tomou conhecimento, de que vários profissionais e órgãos de informação foram impedidos de realizar, no interior de vários hospitais,o seu trabalho de reportagem sobre a greve dos trabalhadores da saúde.

De acordo com as explicações prestadas aos jornalistas pelos responsáveis das instituições de saúde, tal impedimento foi determinado pelo Gabinete do Ministro da Saúde, desautorizando os respectivos Conselhos de Administração, que em alguns casos já teriam anuido a prestar as suas próprias informações sobre a greve, tendentes a habilitar os jornalistas com os pontos de vista de ambas as partes em conflito”

O SJ considerou estes factos como “grave obstrução ao direito de acesso às fontes de informação” e deles deu conhecimento à Procuradoria Geral da República e à Alta Autoridade para a Comunicação Social.

I.2. Questionado pela Alta Autoridade relativamente ao teor deste Comunicado, o Chefe de Gabinete do Ministro da Saúde solicitou informações complementares ” designadamente a identificação das entidades e unidades hospitalares onde terá ocorrido o referido impedimento”.

I.3. A solicitação da Alta Autoridade o Sindicato dos Jornalistas recolheu informação circunstanciada sobre os acontecimentos – que viria a ser transmitida ao Ministério da Saúde. Nesse esclarecimento adicional pode, nomeadamente, saber-se que:

1. Perante as dificuldades de acesso à informação registadas em várias unidades hospitalares no dia 19 de Julho, o Sindicato dos Jornalistas conctactou esse Ministério tendo recebido da assessora de Imprensa, Dra. Ana Margarida Pereira, a informação de que “tinha sido uma ordem directa do Ministro”.

2. Entre os locais onde os jornalistas registaram impedimentos para realizar reportagem em directo figuram o Centro de Saúde de Sete Rios e o Hospital de Santa Maria.

3. Os jornalistas em serviço nesse dia e os que mais frequentemente contactam com as unidade de saúde consideram que habitualmente são criadas condições que dificultam os seu trabalho as quais “configuram uma lamentável situação anticonstitucional e de desrespeito pela legalidade democrática”.

I.4. Reagindo a estas acusações concretas, o Chefe de Gabinete do Ministro da Saúde prestou os esclarecimentos que se transcrevem:

“No seguimento da apresentação de queixa formulada pelo Sindicato dos Jornalistas por aparentes dificuldades criadas no acesso à informação em várias unidades hospitalares, no dia 19 de Julho passado, cumpre informar Vossa Excelência, sem prejuízo da autonomia que se reconhece por lei aos órgãos máximos de gestão dessas instituições, que nunca deste Gabinete, pelo Senhor Ministro ou qualquer dos seus membros, foram dadas orientações superiores, conforme as referidas e personalizadas na Senhora Dra. Ana Margarida Pereira.

Com efeito, a assessora em causa, uma das que acompanha os assuntos para a imprensa neste Gabinete, limitou-se a informar, como é hábito nas circunstâncias de greve, como as que ocorreram à data, que se pretendia fazer uma gestão central dos dados, de molde a que a informação prestada ou a prestar fosse a mais correcta.

Não houve, naturalmente, como não poderia haver, qualquer intuito de negar ou sonegar informação aos respectivos profissionais, nos termos da lei, sem prejuízo de se reconhecer que a sua obtenção em fases de alguma conturbação assistencial como a que resulta das situações de greve referidas, poder causar alguma perturbação.

Assim, nesta data, foram alertados para estas circunstâncias os responsáveis máximos pelas instituições em causa, estando nós convictos, pela própria estranheza que a participação nos causou, que tal não passou de um equívoco, seguramente único e sem precedentes”.

II. ANÁLISE

II.1. A questão do acesso às fontes de informação oficiais e aos locais públicos tem um tratamento exigente no ordenamento jurídico português e está contemplada na Constituição (alínea b) do número2 do artigo 38º), na Lei de Imprensa (Lei n.º2/99, de 13 de Janeiro) em especial no seu artigo 1º, no Estatuto dos Jornalistas (Lei n.º1/99, de 13 de Janeiro), nos artigos 8º, 9º, 19º e 20º, bem como no Código do Procedimento Administrativo (Decreto-Lei n.º 6/96,de 31 de Janeiro) para o qual o Estatuto remete. Sobre esta matéria à AACS foram conferidos, na sua lei orgânica, poderes de tutela visando assegurar a liberdade de imprensa.

II. 2. Do conjunto dos diplomas legais citados e que seria ocioso transcrever, sobressaem algumas regras de actuação e são impostas práticas de conduta às entidades que devem garantir o acesso às fontes que importa salientar:

1. O acesso às fontes oficiais de informação e aos locais públicos é uma condição estruturante da liberdade de imprensa;

2. O impedimento da entrada ou permanência em locais públicos pode ser entendido como atentado à liberdade de informação e o seu responsável punido com prisão até um ano ou multa de 120 dias – que duplicam no caso de o infractor ser funcionário do Estado;

3. A inobservância pelos órgãos da Administração Pública, pelas empresas de capitais públicos, concessionárias de serviços públicos e por entidades privadas que prossigam interesses públicos, do direito de acesso dos jornalistas às fontes oficiais de informação pode constituir contra-ordenação, cabendo à AACS a instrução dos respectivos processos e a aplicação das correspondentes coímas.

II.3. No caso em análise e pese embora a afirmação do Ministério da Saúde de que se tratará de “equívoco” para o qual terão sido alertados “os responsáveis máximos pelas instituições em causa”, não deixa de ser relevante considerar que foram tomadas medidas tendentes à “gestão central dos dados” que, na prática, terão obstacularizado um acesso rápido aos mesmos e o seu tratamento e divulgação junto do público – elemento essencial ao acto de informar.

II.4. Sublinha-se também a intenção do Ministério em não criar impedimentos à actividade dos jornalistas e o seu afirmado propósito de não sonegar informação sem, no entanto, deixar de se salientar que, na decorrência dos valores a prosseguir por uma administração aberta e descentralizada próprios de uma democracia amadurecida e estável se deve exigir maior autonomia aos responsáveis pela gestão hospitalar e aos responsáveis pela prestação de cuidados de saúde.

Só nestas condições se poderão assumir inteiramente como interlocutores válidos dos profissionais da informação – sem outros constrangimentos que não sejam os resultantes do normal desempenho das suas funções ou da dificuldade natural e atendível em garantir de imediato as informações solicitadas – disponibilizando os dados em seu poder logo que possível, em especial em circunstâncias em que o interesse público exige um fluxo noticioso em permanente actualização.

III. CONCLUSÃO

Analisada uma queixa do Sindicato dos Jornalistas contra o Ministério da Saúde por impedimento de acesso às fontes de informação durante a greve dos trabalhadores do sector, que ocorreu em 19 de Julho último, a Alta Autoridade para a Comunicação Social, tomando boa nota da preocupação manifestada pelo Ministério no sentido de não pretender negar ou sonegar informações aos jornalistas,

– sublinha que, na circunstância, foram tomadas medidas tendentes à centralização no Ministério dos dados da greve, as quais obstacularizaram a prestação de informações;

– insta o Ministério da Saúde a reconhecer que o direito de acesso às fontes, estabelecido na nossa ordem jurídica, só pode ser garantido desde que as entidades e serviços dele dependentes disponham de autonomia no seu relacionamento com os jornalistas.

Esta deliberação foi aprovada por unanimidade, com votos de José Garibaldi (relator), Armando Torres Paulo (Presidente), Artur Portela, Sebastião Lima Rego, Maria Manuela Matos, Carlos Veiga Pereira, Maria de Lurdes Monteiro e José Manuel Mendes.

Alta Autoridade para a Comunicação Social,

em 23 de Outubro de 2002.

O Presidente

Armando Torres Paulo

Juiz Conselheiro

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